Sem saída

De repente, da rua fez-se um rio. Violento e frio como um ladrão. As águas invadiram calçadas, praças e roubaram o sossego e a paciência dos capixabas. Hesitei por um instante, mas resolvi atravessar a Avenida Marechal Campos como se tivesse um barco no lugar de um automóvel.

Escolhi um modelo tipo camionete pensando nas bucólicas estradinhas de terra do interior.  Mal sabia que teria tanta utilidade em plena capital. Muitos motoristas, em veículos mais baixos, não tiveram coragem de enfrentar o aguaceiro. Segui uma viatura da Polícia Civil, na ilusão de estar protegida. Afinal, deduzi, os homens da Lei devem conhecer bem o caminho.

Com a primeira engatada e sem parar de acelerar, rezei para o “rio” não ser mais fundo do que supunha. Tive medo de ter o carro arrastado pela água, como naquelas cenas de horror que tantas vezes vi na TV. Na Avenida Vitória, o possante dos tiras subiu no canteiro central e invadiu a contramão. Fui atrás, com a certeza de que não seria multada. Tentei buscar um “atalho” por dentro do bairro de Bento Ferreira. Diante da imagem à minha frente, desisti. O mais sensato a fazer seria achar um local seguro, estacionar e esperar a maré baixar.

A lanchonete do tipo “fast food” fechou as portas mais cedo, segundo as funcionárias, para evitar assalto. Só deu para ir ao toalete. Meu estômago roncava. Ao lado, um serviço de entrega de pizzas pré-assadas parecia ser a salvação. Mas a proprietária disse que não podia assar as redondas. “Não quero levar multa da franquia”, explicou, demonstrando total falta de sensibilidade e de visão comercial. Poderia ter ganhado um bom dinheirinho, aproveitando a fome dos motoristas e pedestres ilhados.

Eu olhava para o cenário de caos, pensando que daria uma crônica. Carros e ônibus presos no engarrafamento. Alguns, como baratas tontas, mudavam de pista, depois davam marcha a ré, num ir e vir em vão à procura de uma saída. Na calçada em frente, moradores de rua discutiam, alheios ao que acontecia à sua volta. Não deu para sentir pena de mim. Pensei em quantos estariam numa situação bem pior, sem ao menos ter uma casa para onde voltar. E a minha voz interior sussurrando para eu manter a calma, pois tudo acabaria bem.

Sempre ouvi dizer que o brasileiro é solidário nas horas difíceis. E não é que encontrei o meu “anjo da guarda”? Ele acabara de chegar de carro do Rio e teve a viagem interrompida a poucos quilômetros de casa. Já passava das 11 da noite quando fez a proposta: “Eu vou à frente e você vai me seguindo. Vamos cortar caminho pelos bairros do Horto e São Cristovão”.

Fui dirigindo sem o perder de vista. Passamos por ruas onde a água já tinha baixado.  Mas no meio do caminho, foi preciso mergulhar no “piscinão de Maruípe” para alcançar a Reta da Penha. Pisquei o farol, em agradecimento, e virei à esquerda, buscando Jardim da Penha. Meu guia seguiu em frente, em direção ao Barro Vermelho. E nem perguntei o nome de quem iluminou o meu caminho.

(Outubro de 2014)

Foto: Gildo Loyola – A Gazeta

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