A morte e a vida por um javali

Era manhã de domingo, um final de outubro celebrado pela beleza do outono. O colorido das árvores, as folhas caídas ao chão, o canto dos pássaros e o perfume das floresta anunciavam a majestade da natureza. Havia visto algumas pegadas de javali durante o percurso até a fonte natural à beira da estrada.

Observava as pedras banhadas pela água cristalina quando Francesca chegou com um sorriso largo e ainda com a respiração ofegante. Afinal, o morro era íngreme. E me disse: “Bom dia!” Com um abraço forte mandamos embora a nossa saudade. Fazia mais de um ano que não nos víamos.

Escolhemos aquele alvorecer para conversar durante uma caminhada no bosque. Um lugar onde nos sentimos em paz para compartilhar histórias, o espaço é livre para se emocionar e o sopro divino faz a alma retornar à casa. Obviamente, não tenho definição pessoal para divino e alma. Entendo o estado de espírito em meio à natureza como a divindade deste universo.

Ainda no início do caminho, vizinho à pequena Pecorino, um senhor nos disse para estarmos atentas. “Há uma família de javalis percorrendo a montanha. Creio que seja mãe, pai e três filhotes” — alertou-nos.

Agradecemos. E, em um misto de euforia e cautela, respondemos que nossa caminhada seria até o Monte Barro. Seguiríamos pela estradinha de terra e não tomaríamos o corredor aprumado… Quanto mais nos distanciávamos da vila, uma energia nos contagiava e sentíamos uma felicidade inexplicável.

Foi com a Francesca que aprendi a não ter medo de andar sozinha na mata durante a noite, logo que cheguei à Itália. Como moramos em montanha, e estou em um dos pontos mais altos, há períodos em devemos percorrer os caminhos sozinhas para se chegar a casa. Isto ocorre quando se está sem carro, uma árvore cai impedindo a passagem, a neve é alta, etc.

Aliás, caminhar sozinha, na floresta, durante o inverno, com a neve alta, em lua cheia, é fantástico! Foi assim que percebi que se está muito melhor em meio aos animais do que em meio aos homens que se dizem civilizados. Ninguém precisa mostrar coragem. É uma necessidade.

Voltando ao passeio… Um cachorrinho veio ao nosso encontro e um homem passou conversando em um rádio. Percebemos que havia algo de estranho. De vez em quando, se encontra algum andarilho percorrendo a floresta, mas não com rádio comunicador e jaqueta laranja com listras florescentes.

Poucos metros à frente, alguns pingos de sangue manchavam as folhas secas ao chão. Um outro cachorro, sentado, ainda anelava quando cumprimentamos o senhor que respondia ao rádio. Olhamos para o lado e uma cena estraçalhou nossos corações: um javali caído ao chão, sujo de sangue com o peito entreaberto. Ficamos em choque.

Você já teve a sensação de receber a notícia ou ver alguém que foi assassinado? É um sentimento estranho. Não há chão. Você se encontra suspenso no ar, há uma cegueira bizarra que, mesmo os olhos podendo ver, ela não deixa enxergar nada. Os sentidos se perdem…

Ficamos sem palavra e imóveis, com o olhar perdido na infinidade de árvores. O que dizer? O homem, com o semblante calmo, mas que, para nós, refletia naquele momento um assassino, nos disse que poderíamos prosseguir.

— O caminho está limpo.

O que seria limpeza quando se via o rastro de sangue no percurso adiante? Com a voz engasgada perguntei:

— Como se mata um javali?

—Com aqueles dois fuzis ali — apontou as armas, encostadas ao barranco.

Eu estava muito confusa. Emoções diversas passeavam pelo meu cérebro e deixavam as reações em meu corpo. Francesca, pálida e calada. Iniciei um passo e retornei com outra pergunta. De alguma forma já havia formulado a resposta, por intuição, com base ao que havia escutado no início do passeio. Prossegui:

— É uma fêmea ou macho?

— É uma fêmea — respondeu, com ar de vitória.

— Mas ela deve ter filhotes e eles precisam dela — rebati.

— Não precisa se preocupar. Eles já são independentes e sabem se virar.

Pensei em, educadamente, responder “Obrigada” e desejar “Bom dia”. Mas fui incapaz. Suspirei e um gemido saiu como réplica. Respirei fundo, baixei a cabeça e retomei o caminho.

Minha amiga segurou forte minha mão. Seguimos por um bom tempo em silêncio. Em minha testa pulsavam várias indagações e paradoxos. Sentia angústia, raiva, compaixão e gratidão por estar naquele lugar, porque, ainda assim, tudo permanecia mágico. Até mesmo o silêncio dos pássaros me fazia pensar que também sentiam aquela morte.

Minhas pernas começaram a capengar e Francesca disse que necessitava se sentar. Não estava se sentido bem. Escolhemos um tronco de árvore à beira do caminho e ali nos acomodamos por um longo tempo, antes de voltarmos para casa.

Para espantar a vontade de chorar, como duas meninas, continuamos de mãos dadas e começamos a conversar dizendo uma para a outra que aquela era a lei da natureza e nada poderíamos fazer. Queríamos entender que deveríamos respeitar aqueles homens, aquele assassinato. E sentíamos culpadas por todos os animais pelos quais já nos alimentamos.

Desde criança, nunca me senti bem comer carne, mas não suporto o título de vegetariana ou qualquer outra denominação. Alimento-me de acordo com o local onde estou. Podem dizer que sou covarde, mas tento respeitar as culturas alheias. Uma opinião comum a Francesca.

Me faz mal quando escuto alguém dizer que não come carne, numa espécie de discurso fajuto, como se fosse salvador do planeta, quando é incapaz de ajudar oser próximo, seja ele homem, cachorro, gato, cavalo… Para mim, é um grito estrondoso de um ego em guerra. Assim como não compartilho com aqueles que julgam os que optam pelo que não escorre sangue.

Da mesma forma, entendemos a importância dos bichos para quem vive no campo. A relação dos animais nos pastos abertos é muito diferente daquela que se predomina nos locais de “produção em massa” para consumo. Já visitou uma granja de galinhas? E, claro, também sabemos da cadeia alimentar e a respeitamos.

Todavia, chega um momento na vida quando é preciso tomar alguma decisão, encontrar um equilíbrio para viver em comunhão. Algo que cabe a cada um de nós individualmente, sem julgamentos.

A morte de uma javali teve uma razão que para nós serviu de lição para a nossa escolha de vida. Uma eleição ao que queremos e ao que nos faz bem. Como se nos libertássemos do pensamento de culpa e contradição.

O alimento continuará sempre um sustento, no campo ou na cidade. A consciência é que muda a partir da forma de se nutrir. Com licença para as frases, é verdade que, na natureza, tudo se transforma e um instante é para a vida inteira.

(Outubro de 2014)

Foto: Edsandra Carneiro