Atriz não conversível

Da janela, olha o dia lá fora. Está frio e o Sol brilha timidamente. Em poucos minutos, precisa terminar de beber o café, vestir um casaco e partir pedalando a bicicleta para mais uma jornada de trabalho. Seu olhar melancólico para o mundo exterior reproduz a frustração do seu ser. Desabafa:

— A minha situação vai mudar! Já faz anos que estou nesta luta. Quero uma vida melhor. Quero ser rica!

Bate a porta e desce as escadas correndo. Bufa de raiva e, como numa sangria desatada, quer se livrar de todas as doenças que a fazem sofrer.

Lia é semianalfabeta. Nunca gostou de estudar. Ainda assim, resolveu arriscar a vida no exterior. Como não fez questão de aprender o seu idioma materno, muito menos o inglês, que dirá o holandês. Entretanto, Lia trabalha.

Usa mímicas para se comunicar. Ganha dinheiro. Faz faxina na casa dos outros e ajuda a família em seu país de origem. Lá, ela é exemplo de quem se deu bem na vida. Jamais revelou que é faxineira.

Para a terra natal, ela é personal organizer, consultora de organização. Embora não saiba pronunciar a palavra em inglês, sabe muito bem explicar o personagem criado para a representação de si própria. Lia é uma grande atriz do teatro da vida real.

Paparicada, por si própria, de roupas de marcas e bolsas com as letras em maiúsculas — L, V ou C —, exibe-se para uma plateia limitada que venera a imagem dela como a garota que teve sorte; que saiu da dificuldade e se lançou no mundo. Agora, banca a vida boa da família. Faz questão de praticar inveja aos demais.

E, numa encenação, com direito a mocinha e vilã, ela se reveza nos papéis. Lia quer ser mais que uma simples personagem. Quer casar, ter filhos e uma mansão na terra natal. Sonha ser uma celebridade, dessas que estampam as revistas de fofocas do mundo inteiro. Para isso, conta com uma estratégia, segundo ela, infalível: conquistar um coroa muito rico e com um carro conversível. Lia está segura: sua vida irá mudar quando encontrar este fenótipo de príncipe encantado.

Se questionada porque não vai estudar para mudar a própria vida, tem a resposta na ponta da língua: “Um homem rico, com carro conversível, quer apenas uma mulher bonita que o satisfaça bem.” Está tão segura da própria capacidade que desafia ao dizer que este homem deve aprender a língua dela e que ele também deve aceitar a viver em um novo país, se quiser ficar com ela…

Chega a noite e Lia se prepara para encontrar o seu futuro. Escova os longos cabelos, faz a maquiagem e finaliza com o batom vermelho. Prepara a melhor lingerie, escolhe a blusa de renda e a calça comprida que revela a silhueta dos quadris. O casaco a protege do frio.

Como uma caçadora em busca de um leão, sabe que, se o encontrar, estará pronta para laçá-lo. Ela se vai na escuridão, sem ao menos uma lanterna na mão para guiar o caminho. Nestes constantes casos insólitos da vida alheia, ela não teme ao acaso.

Mais uma vez, o moço rico cruzou o caminho de outra atriz. Lia volta para casa amargurada. Está revoltada com o diretor da peça vida. Provoca-o em fúria. Não quer mudar de papel e não entende porque dizem que ela não é uma atriz satisfatória.

A crítica diz que ela é fraca de argumentos e não sabe conversar com os outros personagens. Apesar de ser guerreira, revolta-se com tudo e todos. Insulta a quem sugere um novo desempenho no cenário social. Seus olhos exprimem desespero. Não importa! Ela continuará atuando.

Nessa novela prolongada por anos, como os dramas a que assistimos nas televisões estrangeiras, Lia segue atuando, à espera de um final feliz. Pesquisas revelam que o desejo público é de que a personagem de Lia sofra uma mudança de caráter e que o escritor lhe oferte um desfecho próspero.

No capítulo de amanhã, a vida segue a rotina. Na sequência, o café da manhã, uma reclamação da vida, acontecimentos alheatórios…

(Abril de 2015)

Foto: Edsandra Carneiro

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