“Boa Sorte”

Não sei como anda a sua autoestima, pois a minha está tendo um caso escandaloso com o baixo astral. E foi assim que no domingo passado, enquanto meu corpo se esparramava no sofá, me boicotando com a desculpa da mente envolvida com a depressão, percebi meu cérebro ocupando todo o meu crânio. Fiquei encantada com a capacidade discreta e incrível dele preencher lacunas em novos espaços. Quero dizer, idiomas.

Gosto de ler de tudo um pouco, sempre. Mas, quando reforço algum diagnóstico de distúrbio mental ou desconfiguro sei lá o quê de identidade, na falta de mar, mergulho fundo na leitura como fuga da realidade. Nessas horas, geralmente, leio em minha língua materna. Por vezes, passo longo tempo prendendo a respiração e, com a falta de concentração, logo retomo à superfície para buscar ar. Sem forças, fico boiando por ali mesmo, quase à deriva à espera de um bote salva-vidas.

Por outras, mergulho equipada com oxigênio e, dependendo da quantidade, permaneço em determinadas coordenadas aproveitando a corrente das palavras por horas a fio. Entretanto, quando arrisco ultrapassar os limites das profundezas sou surpreendida positivamente pelo o universo desconhecido.

Foi assim que li o romance “La buena suerte”, da escritora espanhola, Rosa Montero, em um único mergulho, quero dizer, em um dia. Mesmo sendo apenas uma aprendiz do idioma espanhol — em uma sala de aula online para estudantes holandeses —, meu parceiro me presenteou com o livro de literatura estrangeira. O título lhe pareceu sugestivo, ainda ele não conhecendo nada da história. Com isso, tive a sorte de ter o funcionamento do meu encéfalo reativado — calma lá, oh! Só um devaneio literário sem nenhuma relação com a ciência. Claro que quando o cérebro pára a gente morre, né?! Então, deixemos isso pra lá.

Pois bem! Mesmo não conhecendo quase metade das palavras escritas por Montero, o cérebro foi capaz de preencher todos os espaços em “branco” (palavras e termos desconhecidos) oferecendo-me a compreensão do contexto geral da história. Obviamente, não parei para usar o dicionário ou o tradutor online, apenas deixei meus olhos percorrerem por aquelas palavras escritas, livre de amarras ou julgamentos. 

Interessante observar nossa audácia em nos subordinarmos dizendo não sermos capazes disso ou daquilo, mas quando já não temos nada a perder e não sabemos quem realmente somos, descobrimos um mundo rico de compreensão e imaginação, adaptável a quaisquer novas situações. 

De certa forma, “La buena suerte” me lembrou da minha “fuga” da vida no Brasil. Quando, anonimamente, trabalhei por mais de um ano como ajudante em um pequeno restaurante italiano. Vivia sozinha em um pequeno vilarejo, minimamente habitado e deserto no período de inverno. Minha companhia era uma gata que decidiu morar comigo. Todos os meus pertences cabiam dentro de uma mala. E, diferentemente da obra literária, nada de segredos ou mistérios — pelo menos a meu ver. 

Confesso ter sido essa época um dos melhores períodos da minha vida, possivelmente, o melhor. Era uma desconhecida e eu sequer tinha internet para me conectar com o mundo lá fora. Naquele período, conquistei a confiança e o respeito dos locais sendo apenas, nas palavras deles, “moça culta e educada” — o porquê desses adjetivos é muito evasivo, entretanto, foi a “identidade” que me deram. 

E, pelo fato de os proprietários, ou melhor, praticamente pelo fato de todas as pessoas, em todos os locais,  não falarem inglês, tive que aprender italiano “na marra”. Algo como uma criança antes dos seis anos de idade: por meio de gestos, mímicas, compreendendo sons, associando coisas e palavras. Fui adotada pela comunidade, ganhei até uma avó branca e esta “nona” nem me rejeitou por ser metade preta, pelo contrário. Pude “renascer”.

Nunca fui à escola de italiano, mas em alguns meses, comecei a ler jornais velhos, revistas, livros e, curiosamente, tudo o que despertava algo novo em mim. Compreendia ser humano recomeçar e me divertia com as gafes de homônimos — palavras com a mesma grafia mas com diferentes significados. 

Bom, estou apenas contando  isso para falar da nossa capacidade de aprender algo novo, independente da idade. E mesmo que alguma porcaria de problema mental queira te dar a rasteira insinuando você não ser apto a nada ou deixando você perdido sem saber por onde recomeçar, mande a sua mente à merda — sem ofensas por usar esse termo.

Esse verdadeiro dualismo dentro da nossa cabeça me confunde à beça. 

Então, não é nenhuma transgressão estimular a condição de acionar os impulsos da nossa memória e imaginação. Todos nós podemos desempenhar quaisquer atividades relacionadas ao nosso intelecto. Pensando bem, quiçá encontro a autoconfiança para me reinventar? 

Portanto, assim como disse a personagem Raluca, em uma das passagens mais simples e marcantes no livro de Montero: “se tú no haces algo por tu vida, tío, la vida no hará nada por ti” — em uma tradução livre, se você não fizer nada pela sua vida, cara, a vida não fará nada por você.

Logo, mesmo em um primeiro momento não entendendo bulhufas de nada, permita-se experimentar, sentir, ouvir, ver, ler e falar algo novo em uma nova língua. Pode ter certeza que você vai se encantar por esse seu miolo. O resultado dessa aventura, por vezes, será apropriado pela palavra “sorte”. E se esta vai ser boa ou ruim, a decisão é só sua.

E, ah! Isso não quer dizer ser você melhor ou pior que o outro. É apenas a sua “cachola” em ação.

 

Janeiro de 2021

Foto por Matias North em Unsplash

Edsandra Carneiro escreve, eventualmente, às quartas-feiras.