Bolsa de crochê

Ela chegou deitada no leito móvel guiado e empurrado por duas enfermeiras. Miúda, era quase engolida pelo travesseiro e edredons. Cabelos curtos e grisalhos, no rosto, a armação dos óculos na cor azul oceano dava um toque astuto nos olhos arregalados e brilhantes. Lentamente, observando em torno, ia se recompondo do pedaço retirado.

Sabia que gostaria de ficar sozinha e curtir um momento de solidão. Aproveitou e pediu para uma enfermeira dispensar, por telefone, o marido ou quaisquer filhos. Almejava algumas horas para si. Assim, todos poderiam aproveitar o tempo livre para fazer o que bem quisessem.

Com o leito devidamente posicionado no quarto, a enfermeira abriu o moderno armário, com cadeado eletrônico, e retirou de lá uma linda bolsa em tons pasteis azul, cinza e marrom e pequenos detalhes dourados. Colocou-a no canto da mesa ao lado da cama da paciente.

Ao ser aberta, um mundo saiu de dentro da pequena bolsa: livro, caderno, caneta, marcador de texto, revista, estojos, celular, batom, espelho, pente e… Ah! Você conhece bolsa de mulher, né? Ali estão, praticamente, todos os primeiros socorros e até os ganchos necessários para se dar continuidade na vida cotidiana. E naquela estava tudo muito bem organizado.

Além disso, na bolsa daquela mulher havia algo a mais: um tipo de agulha especial, dotada de gancho. Segurada por mãos firmes, deslizava pela linha pérola produzindo um trançado rendado minimamente delicado. A harmonia dos movimentos conotava espada e escudo para enfrentar um inimigo mortal.

Um adversário chegado traiçoeiramente, acometendo e destruindo partes daquele pequeno corpo. Assim, aquela senhora foi rasgada e remendada na esperança de driblar e retirar os invasores de seu templo. Naquele quarto também estão outros combatentes. Cada um ferido e aberto por diferentes formas. Mas, cada um costurado com um único desejo: viver.

— Veja! Estou fazendo esta bolsinha. Se ajeite aqui, óh! Que tal?! Você gosta? — comentou empolgada ao perceber ser observada.

— É linda! Que trabalho magnífico! — respondeu a moça entusiasmada pensando nos belos trabalhos artesanais maternos.

— É um ponto que aprendi com a minha mãe. Vem de outras ancestrais. Um bom motivo para prestar atenção e preencher os meus dias. Não acha?

— Sim, ótima ideia! É…É…

A minúscula peça brilhou nas mãos da jovem. A visitante abriu e fechou os olhos sentindo e vendo a pequena bolsinha se transformar em jóia.

— É mágica!

— Velha alma de mãos delicadas no corpo de menina, a magnitude das nossas ações chega por meio de algumas batalhas. Depois, chamamos de recomeço. Sim, a doença é a razão para me permitir descobrir quem eu sou e fazer o que eu gosto. No crochê, manifesto o meu poder e encontro a minha proteção — resplendia suave luz, enquanto falava.

Ainda que a aparição de alguns inimigos seja um mistério, artesanatos de origens ancestrais e incertas transformam-se em grandes armas nas mãos de nobres mortais. Com um pequeno e fino instrumento, aquela senhora apanha, segura e cose a delicada linha da vontade de se manter viva. O recomeço é apenas consequência de algumas antigas e novas atitudes.

Junho de 2017
Foto: Giulia Bertelli
Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.