Carona do marido

Ganhar pontos na Carteira de Motorista desgoverna o sono da gente. Além das minhas multas, recebi, recentemente, três do meu marido. Explico: o carro, hoje dele, um dia, foi meu. Por comodismo, não fizemos a alteração dos documentos. Assim, toda vez que ele avança um sinal, eu fico no vermelho.

Enchi o porta-malas de paciência e fui ao Detran resolver a questão. Fila para isso, fila para aquilo, o banco não é perto, a copiadora na outra esquina… Enfim, tudo o que se precisa para resolver o problema não está nunca ao alcance da visão.

O tempo se arrasta mas, finalmente, sinto alegria ao ouvir “Próximo!” Entro na sala e, enquanto a funcionária examina os documentos, observo o ambiente. Chama atenção uma cópia xerox colada no computador com o rosto de Cristo. Um olhar lindo e os lábios sensualmente entreabertos. Uma boca e um sorriso muito, muito sexy.

Jesus, perdão! Acho que o tempo de espera afetou meus neurônios e quase avanço o sinal da religiosidade. Pior é que, na Igreja, a multa é mais pesada que as dos guardinhas de trânsito. E, para pagar, você ainda tem que ir para os quintos dos infernos. A bem da verdade, como eu estava no Detran desde cedo, isso não iria me assustar mais.

Bom, deixei Jesus de lado, ou melhor, a foto de Jesus, e voltei meus olhos para a inerte atendente. Como não resisto a uma conversa, e para ter certeza de que ela estava viva, puxei assunto. Comentei que as mulheres costumam fazer coisas demais por seus maridos, mas, ficar com as barbeiragens deles, está fora de questão.

Para espanto meu, ela ressuscitou. Levantou os olhos e, assim, como quem conta um segredo, disse:

— Pois é muito comum. Muitas mulheres agem assim. Há casos, inclusive, de assumirem até serem obrigadas a fazer o cursinho de reciclagem. Aulas no final de semana e tudo o mais. Alegam que o marido precisa mais do carro etc.

Taí mais uma forma inusitada de submissão. Do feminismo americano ao brasileiríssimo homens-e-mulheres-são-iguais-perante-a-lei, foram muitos quilômetros rodados, mas essas derrapagens ainda são comuns. Machismo velado deveria ser considerado infração gravíssima.

Certamente, deve haver casos em que essa atitude se justifica. Mas, em todo relacionamento, é preciso estar atento aos sinais de pista desnivelada. Na condução de uma relação, a mulher que se contenta em ficar sempre na posição de carona perde o melhor da viagem.

Martha Gonzalez publica, quinzenalmente, no Clube e aprendeu a frear no sinal amarelo em vez de sair acelerando como se não houvesse amanhã.

(Inverno, 2014)

Imagem: escoladepostura.com.br

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