Dizer o indizível: a salvação do homem

(Por Eduardo Selga)

Porque as matemáticas não dão conta da vida, tampouco os raciocínios pragmáticos em demasia, cheios de certezas redondas e, não raro, explicações quadradas, sempre desconfiei muito das exatidões indiscutíveis que se nos apresentam durante toda a existência. Por mais que os fenômenos pareçam lógicos em suas causas e consequências, sempre fica algum vácuo, o espaço para o inexplicado. Ou, em muitos casos, para algo que parece antagônico ao homem, por sermos os senhores da linguagem: o indizível.

Numa tentativa de traduzir o termo, diria ser aquilo a respeito do qual não se sabe ao certo nem mesmo o que seja, inviabilizando explicações. Ou, usando outros termos – mas não dizendo exatamente a mesma coisa -, nossa subjetividade, nossa alma, até sabem do que se trata, mas não encontram palavras que traduzam adequadamente. O indizível é um idioma sem dicionário.

No entanto, a indizibilidade nos insatisfaz. O vazio representado por uma situação sem palavra que dê conta dela escava outro espaço vazio, uma oquidão(!), dessa vez em nós. Como se não pudesse ser. É que o anonimato de certas coisas, das coisas incertas, nos incomoda profundamente e, ao mesmo tempo, nos propõe um desafio: como referir-se ao intraduzível pela linguagem usando as palavras que a linguagem põe à nossa disposição, se elas tratam do traduzível? Bom, palavras as gentes fabricam e remodelam na medida das necessidades, não são instrumentos estáveis. Tampouco confiáveis. Daí, por exemplo, as gírias e os neologismos, que também são palavras, portanto potencialmente traiçoeiras, mas se nutre a esperança de que não sejam, uma vez criadas.

Apesar disso, inventar palavra ainda não é o bastante para garantir a tradução do indizível, na medida em que ela sempre é precária, como se houvesse uma deficiência genética ou uma maldição na linguagem responsável por ela de certa maneira perder o fôlego. Essa precariedade é ainda maior porque uma palavra nova é uma palavra-neném, toda inexperiente no seu ofício de significar.

Aqui entra o texto de ficção, aquele no qual existe um tratamento artístico da palavra, ou seja, ela é usada fora do pragmatismo utilitário que pretende, com um mínimo de espaço à subjetividade, explicar todo o existente. Mais que conceber palavras novas ou utilizar as já dicionarizadas, é a criação de imagens por meio delas que revela a importância da literatura na tarefa, cada vez mais árdua nessa pós-modernidade fragmentada, de expressar as incertezas ou as certezas um tanto vagas porquanto ainda não solidificadas pelo mundo pragmático, este prestidigitador que gosta de se exibir como se nada houvesse a elucidar.

Hoje tudo urge (terá havido outro tempo assim em nossa história?), e uma das urgências é nos salvarmos enquanto espécie. Não me refiro ao clima ou a uma possível guerra planetária, e sim à ditadura do racional, concreto, mensurável, manifesto e, evidentemente, dizível, que tenta aprisionar-nos no limite de apenas uma das várias dimensões da vida.

Por isso, pela necessidade de salvação, a arte. Não exatamente ela cria o novo, e sim é instrumento para o existente oculto manifestar-se. Assim, o texto literário não é a fabricação de realidades a partir do nada, ou da imaginação “viajante” do autor, como se não houvesse um pé bem fincado na existência do que chamamos real: ela concretiza imagens que de algum modo estavam esperando a chance de se manifestarem.

Ao resgatar enredos e personagens do limbo onde já existiam em estado latente, o autor ajuda na sobrevivência da espécie porque, muitas vezes, precisa organizá-los por meio de recursos verbais pouco comuns, e o inusitado pode dizer o oculto, o indizível. Desse modo, é possível mostrar aos outros homens novas dimensões. É o instante no qual o leitor, ao pôr os olhos no texto, sente um clarão na alma, sorri aquela alegria algo infantil e, pego em estado de surpresa diz a si próprio: “ora, veja só… não é que é mesmo?”.

A partir daí o indizível, que apenas existia sem rosto, ganha uma identidade. Ou seja, somos criadores. Aberta mais uma vereda na humana existência, podemos avançar, criaturas que somos. E ficamos todos felizes: nossa porção Deus e nossa fatia humana.

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