Ela

Depois das férias em terras da família real, decidiram, de uma vez por todas, aprimorar o idioma inglês. Na verdade, queriam se livrar do acento meridional, porque isso denunciava de onde vinham e sempre caíam nas mesmas convencionais perguntas e comentários sobre a terra natal. Talvez quisessem ser tratados como a filha adolescente, pois esta, simplesmente, era dotada para novas línguas, como se fosse nativa de qualquer lugar ao qual visitavam.

Chegaram a se perguntar de onde vinham a inteligência e a habilidade da filha. Afinal, não tinham lembranças de ancestrais, por ambas as partes, tão descolados para novos falares. Aliás, foi por causa da primogênita que começaram a aventurarem-se para “longe”. As condições sempre foram boas; todavia, optavam pelos passeios em territórios “seguros”. Ou seja, na zona de conforto do linguajar materno.

Na viagem para a Inglaterra, descobriram o prazer em atravessar novos oceanos. Mas sentiram-se desconfortáveis pela limitação de vocabulário ou entendimento do dialeto local: “Filha, o que ele quis dizer com…? “Ela disse o quê mesmo…?”. De fato, reclamavam dos ingleses porque estes falavam como se tivessem um ovo na boca. Ainda assim, ficaram entusiasmados com a visita e, no próximo ano, iriam para a Escócia e Irlanda. Pois bem! Retornando à casa, prometeram estudar e praticar inglês britânico.

Passados alguns meses de vida normal cotidiana, ao chegar do trabalho e deixar a bolsa, chave do carro e outros apetrechos na mesa do corredor de entrada, a mulher depara-se com o bipe de uma mensagem no “telefone inteligente” do marido. Com a curiosidade ativada, nem precisou desbloquear o aparelho — aliás, ela não é esse tipo de mulher que fica cutucando celular da pessoa alheia. Entretanto, era possível ler tudo na tela do telefone:

— Olá! Sou eu, Louise! Como você está está? Espero que você esteja bem. Então, se você quiser melhorar o seu inglês precisa praticar. Que tal agora?

Pensou:

— O quê? —  fechou, abriu os olhos e releu a mensagem. — Quem é essa atrevida? Como é? Praticar inglês? Como assim? Desde quando? Como ele tem coragem de…

Sentia um calor imenso surgindo pelas entranhas enquanto a fúria brotava com reviravolta no estômago. Pensou em gritar e correr até o marido, esganando-o pelo pescoço. Estava furiosa, com muita raiva. Respirou fundo e, antes de dar chance da baixa autoestima tomá-la por inteira, olhou-se ofegante no pequeno espelho pendurado na parede e lembrou a si mesma da dica terapêutica:

— Você é uma mulher inteligente, atraente, elegante, feliz… — Contou até 10 e, sim!, ela confiava no marido, ponto.

Desceu do salto — mesmo com vontade de arremessá-lo contra o homen — e caminhou descalça até a cozinha. Ele tinha chegado mais cedo e, pelas regras das tarefas caseiras, hoje era a noite dele fazer o jantar. Quando a viu, disse empolgado em inglês:

Hi, sweetheart! How was your day? (Oi, amor! Como foi o seu dia?) — vestido com o avental comprado em uma ilha em tempos de Lua-de-mel, ele a segurou pela cintura e lhe deu um selinho na boca e um cheiro no pescoço. Estava tão feliz e empolgado que nem percebeu o mau humor da mulher.

— Bom! Preciso tomar um banho! — respondeu a mulher, secamente.

A esposa viu uma faca amolada sobre a bancada da pia e um pensamento assassino passou pela sua cabeça. Estava muito furiosa com o cinismo do marido. Era melhor sair dali, evitaria uma tragédia. A filha ainda não havia chegado da aula de balé e, quando chegasse, poderia presenciar o pior. Subiu as escadas e foi para o quarto.

O jantar foi servido: família reunida à mesa, pai e filha empolgados com os acontecimentos diários e aterrorizados com as notícias internacionais. A viagem para a Escócia e Irlanda seria em alguns dias. A esposa manteve a pose e se conteve a poucos comentários com a desculpa de uma dor de cabeça adquirida com o estresse da reunião de trabalho.

Na verdade, matutava:

— Quando foi que ele a conheceu? Só pode ter sido na Inglaterra? Mas, quando? No lobby do hotel? Como ele pode ser capaz? É culpa minha? O que eu fiz para merecer isso? Eu sempre o deixo muito solto? Deve ser isso, a Natália tem razão. Deveria controlá-lo mais. Por que eu não olhei aquele maldito celular antes…

Com a permissão dos pais, a filha se retirou da mesa. E foi quando a mulher atacou:

— Quem é Luísa?

— Oi? O quê?

— Não se faça de desentendido. Quem é Luísa?

— Sei lá, não sei! Do que você está falando? Quem?

— Você sabe muito bem de quem estou falando. Ela enviou uma mensagem para você. Que tipo de inglês vocês estão praticando?

— Ah, você está falando da Louise?

— Louise, Luísa, Lu, seja quem for. Quem é ela?

O marido começou a rir descontroladamente.

Ela ergueu-se, quase derrubando a mesa, batendo com as mãos sobre a toalha, levantando, com o impacto, pratos e talheres. A taça de vinho rolou para o chão:

— Quem é ELA? Quem é LU-Í- SAAAAA? — cerrando os dentes, começou lentamente e aumentou gradativamente o tom de voz, segurando-se ao máximo para não gritar descontroladamente. O rosto queimava em vermelhidão como se as veias do pescoço fossem estourar a qualquer momento.

O marido se encolhia na cadeira assustado com a transformação da mulher:

— Amor, amor… Calma. É só um app.

Perplexa, a filha entrou correndo na sala de jantar.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou, encarando os pais.

— O seu pai está tendo um caso com uma britânica e tem a cara de pau de me dizer que é um app. — disse a mãe nervosa.

O pai foi buscar o celular.

— Filha, olha aqui. É aquele app que…

— Ih, mãe! Relaxa. É só um aplicativo que indiquei para o papai melhorar o inglês dele. Se a senhora quiser, depois eu baixo no seu celular. A senhora pode escolher entre um praticante feminino ou masculino. Talvez goste do Thomas…

A mulher, boquiaberta e sem reação, caiu sentada na cadeira.

O marido se aproximou e disse, quase sussurrando:

— Também ficaria irritado se soubesse assim do seu caso com esse Thomas. Mas é só um app. Certo?

Julho de 2017

Foto: Gilles Lambert
Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.

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