Eles

No primeiro dia e jantar do ano, a turma se reuniu na montanha para celebrar a vida em harmonia com boa comida e selecionados vinhos. Cada um produz e compartilha alguma coisa. Na abundância de carisma, há maratona para o estômago digerir a fartura de guloseimas enquanto a mente se ocupa de entreter o corpo e alma em uma mistura de gente e causos.

Lá pelas tantas da noite, no meio do alvoroço de quatro vozes femininas e quatro masculinas — depois da entrada, primeiro prato, segundo prato, sobremesas, mas entre o café, a grappa e todas as provas de licores caseiros —, o Gian bate na mesa:

— Estou falando sério. Eu vi um menino no quarto de vocês! — soltou a frase e observou em torno.

Os convidados, atônicos, começaram a rir.

— Era um fantasma. É sério! Eu subi as escadas e vi as pernas dele do outro lado, perto da janela. Observei pelo vão da cama, quando ainda estava na escada. Fiquei parado e ele se foi. Pode perguntar à Fafá. Ela também viu. São duas crianças: uma menina e um menino.

— Oh, rapaz! Você bebeu demais. Suspende o copo! — argumentou o amigo do outro lado da mesa.

— Rapaz, eu lá sou homem de mentir? Você me conhece! Eu juro pela minha mãe… — antes de completar a frase, desviou:

— Ah! Vaffan…— deixou o palavrão no ar.

Na cabeceira da mesa, para aumentar o suspense naquela noite gelada e escura e quase um retorno aos causos dos tempos de crianças, argumentou a moça:

— Se têm fantasmas na nossa casa, onde eles estão?

— Ohhhhhhh!!! — alvoroço geral.

— Uuuuhhh! — gritavam alguns.

As outras três mulheres a encararam.

— E você vive lá sozinha? Você tem o quê na cabeça? — disse Sara com os olhos arregalados. Continuou: — E nunca os viu? Não tem medo não?… — disparava trocentas perguntas como se fosse uma matraca desregulada.

— Ouuuh! Deixa eu falar! Cadê a educação? Estou contando… Deixa eu terminar a história… — enfezou o anfitrião. — Onde eu estava mesmo? Ah, lembrei! Eu estava lá, reformando o corredor e, no momento em que joguei o jato de areia nos arcos das portas, ouvi os fantasmas gritarem, assim: ‘Uiiuuu! Uiiuuu! Uiiuuu!’ — imitou o som dos supostos visitantes. — Acho que exterminei alguns com aquele jato.

— As crianças? — chacoteou alguém.

— Eles já estão mortos. Vai matar o quê? — concluiu a vizinha.

— Rapaz, isso é o barulho da areia na madeira velha — afirmou outro amigo.

— Não é não, sô! Noutro dia, quando não tinha ninguém na vila, resolveram me perturbar. Eu estava carregando as ferramentas, me deram um sacolejo e fecharam a porta do carro na minha cara. Raaapaaaz, gelei! Só não fiz nada nas calças porque já tinha feito antes. Eu falando sério. Aquele lugar é assombrado. Pergunta à Alina. Ela entende dessas coisas de gente morta e até disse para manter o túnel fechado.

— Que túnel? — perguntou a moradora da tal casa.

— O que dá acesso a igreja.

— Está fechado há mais de século — a conversa é sobre uma casa com mais de 300 anos.

— Éh! Mas quando eu estava limpando a cacimba — até hoje a vila não possui água potável encanada —, escavei um pouco da parede do porão. Ali era o túnel, sabia, né?

Assentiu a moça com a cabeça.

— Então, senti uma corrente de ar gelada surgindo da terra. Liguei para Alina, ela foi lá e mandou eu fechar imediatamente. Não era boa energia.

— Dessa eu não sabia — surpreendeu-se o amigo. — Com que permissão você está trazendo gente para analisar a nossa casa, sem a nossa presença?

— Rapaz, você é meu amigo. Se eu trabalho para vocês, têm que confiar em mim…

— Por favor! Eu só quero saber onde estão estes fantasmas de quem você está falando? — argumentou a moça.

— Eu sei lá! Vocês que convivem com eles. Se vocês nunca os viram, talvez seja porque eles gostem de vocês!

— Verdade! — acrescentou Flor. — Eu também sinto a presença deles aqui em casa. Eles gostam de mim. Tenho bom relacionamento com eles. Por isso, me deixam em paz.

— Que papo é esse, mulher? Não venha de gracinha para o meu lado. Porca miséria, eu disse que os fantasmas estão na casa deles e não aqui — estufou o peito tentando esconder o medo explícito.

— Amor, eu sinto a presença deles. Eu vejo sombras. A maioria são vultos de animais.

O marido cresceu na cadeira, enquanto segurava as mãos no assento e arregalava os olhos.

— O Bimbo, por exemplo. Todas as manhãs converso com ele. Sabe aquele dinheiro que a gente ganhou na Loteria? Então, foi ele quem nos ajudou. E ele também…

Cada um desviava o olhar para um canto, para o chão ou para o teto. Sobrou para a moça da casa assombrada dar atenção a Flor.

— Bimbo, o seu cachorro? — surpreendeu-se.

— É, o meu cachorro. Sabe? Ele foi enterrado ali no quintal, de frente para a janela da cozinha. Ele continua por aqui. Eu falo com ele e sinto a presença dele todos os dias. Ainda é o meu fiel companheiro. Quando eu morrer, quero me encontrar com ele e passar bem longe de onde estiver a minha mãe — percebendo em torno, deu de ombros e continuou resmungando para a moça.

A prosa ganhava nuances nos arredores da mesa. Como focar atenção naqueles diversos não tão devaneios da turma?

Teve gente que contou experiências fantásticas tipo filme exorcista. Aliás, tipo de vídeo a ser evitado. Qualquer filme de terror fictício pode passar, mas exorcista não. Tem coisa real ali, murmuravam quase em unanimidade.

Uma mulher contou as histórias dos avós do Sul. Gente que entende do assunto. E aconselhou a todos o que a vó a ensinou:

— Antes de dormirem, coloquem uma faca grande e bem afiada na greta da janela.

— Para quê? — ressoaram todos em coro.

— Para cortar qualquer espírito maligno.

— Nossa! E por falar nisso… — interrompeu Flor, mais uma vez: — Eu acho que recebo algumas presenças ruins.

Silêncio.

— Sabem? Eu amo meu marido.

— Hum! Ah, não mulher! Veja lá o que tem para revelar — alterou Gian desconfiado.

— Mas, às vezes, eu sinto uma coisa estranha que adentra meu corpo. É muito esquisito. Sobe um calor pelas minhas entranhas, de tal forma que pareço outra pessoa. Tenho certeza que não sou eu. Uma raiva quase incontrolável. Tenho vontade de voar no pescoço dele. E sinto desejo de desaparecer ou dele sumir da minha frente. Isso não é normal. Creio que sejam eles, os maus espíritos.

A turma escutava boquiaberta. Até que alguém teve a audaciosa gentileza de esclarecer o caso.

— Flor, se isso é receber espírito, então todas nós recebemos. Principalmente quando eles deixam a toalha molhada em cima da cama, quando provocam um tornado no guarda-roupa para encontrarem apenas uma simples camiseta, quando são incapazes de encontrar o par de meia que está no compartimento para meias e por aí vai. Se isso for coisa do além, sinto muito em lhe dizer, mas todas nós deveremos ser exorcizadas.

Gargalharam todos eles. E elas também.

Janeiro de 2017

Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.

Ilustração: Celso Felipe Carvache

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