Ensurdecer os tambores

Por Eduardo Selga

Eduardo Selga

 

Vamos renascer das cinzas

Plantar de novo o arvoredo

Bom calor nas mãos unidas

Na cabeça de um grande enredo

(Renascer das Cinzas –Martinho da Vila)

Houve um momento em minha vida em que acordei e me descobri não um protagonista no mundo, e sim apenas mais um personagens dentre milhares em busca de um enredo que valha a pena ser vivido. Também me dei conta do lugar-comum que considera o brasileiro uma criatura feliz, extrovertida, brincalhona, quase truanesca, embora eu ainda desconhecesse o palavrão adequado para nomear o fato –estereótipo. Também não sabia que um conceito ser torto não é garantia de seu banimento no “meio circulante” das ideias. Aliás, muito estranho, costuma ser motivo para sua permanência. Mas aí, um dia…

Somos mesmo tamanha festança? Tentando pôr em sua devida balança alguma rabugice e certa má vontade em reconhecer a alegria, concordo: temos uma tendência ao sorriso fácil, vá lá. Mas daí à felicidade vai uma distância apreciável. O primeiro me parece um artefato de escape ao sofrimento e, nesse sentido, uma das versões do jeitinho brasileiro; a segunda, uma circunstância social menos dependente da “índole” do povo do que de outros fatores, como a economia e a política.

Digamos, então, que somos alegres. Pois nossa alegria enquanto povo, excessos do estereótipo à parte, pode ser simultaneamente nossa libertação e nossa derrocada, a depender de como nós, senhores ou escravos dessa característica, a usarmos. No entanto, se dermos ouvidos aos discursos para boi dormir feitos a respeito de nossa alegria, nosso destino será a tristeza, o encurralamento que já se avizinha no horizonte, em minha opinião. Precisamos não nos distrair, nem distraídos olvidar o que talvez ainda não tenhamos alcançado por completo: nossa alegria sempre foi massa de pão manipulada por estranhos dedos, a alimentar fomes alheias; articulada no sentido de mostrar que “está tudo muito bem”, nos enxergarmos meio imbecilizados no espelho e junto a outras nações cujo desenvolvimento material nos é mostrado como indiscutível modelo de civilização, a despeito da barbárie que isso implica.

Talvez seja a hora de fechar o sorriso e esculpir no semblante uma bela carranca. Ou, melhor, abandonar a máscara cênica da comédia que nos impingiram (ainda que tenhamos uma natureza bem humorada), mas não necessariamente adotar a máscara da tragédia (embora vivamos embarcados em uma), e sim fazermos novo uso de nossa máscara particular enquanto povo, construída pela cultura. A diferença entre essa e aquela? A mesma entre as identidades do povo e a popular; entre a edificada pelo povo e a imposta a ele.

Alegre, prazenteiro, amável, contente e auspicioso são alguns sinônimos de sorridente, os dicionários garantem. Se observarmos nosso entorno verificaremos que há algo de podre no reino da Dinamarca, que esse aspecto de nossa autoimagem em grande medida construída e tenazmente sustentada por quem não nos tem apreço, e até por parte de nós mesmos, esse aspecto está atrelado de modo indelével à nossa cultura, na acepção mais ampla da palavra. E esta é nossa grande veia discursiva, nossa grande verve, mais do que outros aspectos, como o político.

Saindo um pouco do abstrato, e adentrando o nem tão palpável assim, retoricamente pergunto: por certo um de nossos ícones identitários é o carnaval? Descarnavalizemo-no, ora pois. Não como um modo de mais uma vez nos negarmos enquanto povo (seria clichê demais), e sim o contrário: propondo a nossa afirmação, negando os estereótipos a nosso respeito.

Imaginemos a seguinte situação: Marquês de Sapucaí (ou qualquer outra grande avenida na qual o samba se mostre), tevês ao vivo, nos camarotes turistas meio abobalhados de surpresa. As maneiras de ser de outros povos às vezes fazem grande esforço para atingir o significado preciso daquilo que se passa no asfalto como passarela, para além do espetáculo. O dia é de apoteose, as grandes escolas vão desfilar na versão brasileira das festas em homenagem a Baco. Mas eis que, sem nenhum aviso, a primeira delas e todas as outras simplesmente não desfilam: caminham na passarela, apenas ao som dos surdos, aliás muito condizente com o imenso funeral em que estamos nos enterrando.

Alguma agremiação cometeria essa espécie de desobediência civil, ponderando os interesses e obrigações que envolvem um desfile que há muito se perdeu da espontaneidade popular e se “profissionalizou”? Dificilmente, e por isso sugeri que apenas imaginemos, o que já é algum fragmento do caminho. Na verdade, falo de o povo descer os morros e, em pleno carnaval, recusar-se a brincá-lo, mesmo porque cultura popular é coisa séria; recusar-se os simultâneos papéis de picadeiro, palhaço, mágico e malabarista para o gozo dos donos do circo; falo, por meio desse exercício de imaginação, em recuperarmo-nos do sequestro cultural de que estamos vítimas. Por fim, refiro-me a abandonarmos a máscara com que nos vestiram e, assumindo a nossa própria, deliciosamente caiamos em nós. Precisamos nos comer, no sentido de saborear o nosso próprio gosto. Reconheçamos nossa complexa e ambígua identidade, descarnavalizando o carnavalesco e, assim, sejamos ainda mais carnaval, porém na intenção anárquica que a festa pode assumir, ou seja, o caos gerador de uma fuga ao estabelecido. Ou o desmonte cujas peças, ao serem novamente montadas, resultam noutra construção.

O silêncio em plena Saturnália brasileira não é tão absurdo quanto pode parecer, uma ideia inaplicável porque o brasileiro sempre foi assim ou assado, ou assado assim em fogo brando: aqui no Brasil há um precedente curioso, a Noite dos Tambores Silenciosos, no maracatu de Pernambuco, cerimônia durante a qual se rememora, num cortejo em silêncio, o calabouço que era o mutismo ao qual os escravos estavam submetidos ao não poderem exprimir adequadamente parte de sua identidade, a crença nos orixás.

Ora, ainda hoje não podemos nos expressar completamente, escravos que somos de grilhões de naturezas diversas. Por que não o surdo grito do silêncio, altissonante de modo a calar fundo nos que precisam ouvir e, ouvindo, acordar? Ou não é mais verdade que quem ri por último ri melhor?

Eduardo Selga é cronista convidado.

Imagem: http://www.uacm.edu.mx/OfertaAcademica/CHyCS/ComunicacionyCultura