Falando Sozinho

Sou membro de uma comunidade secreta: Os Que Falam Sozinhos — também conhecida como Pensar Alto ou Falando Com os Meus Botões — esta última mantém a denominação mesmo usando apenas roupas com zíper.

É prática saudável. Estudos afirmam: terapias utilizando a fala são eficazes porque, ao verbalizar, somos os primeiros a nos ouvir. Faz sentido. Por isso, embora não pratique com frequência, não abandono o comportamento.

Verdade que, nem sempre me respondo, nem sempre concordo comigo mesmo e nem sempre me dou ouvidos, até porque nem sempre estou disposta a falar com qualquer um.

O número de integrantes não para de crescer, mas a maioria não se conhece. Um dos motivos seria a falta de costume de falarem uns com os outros sobre o hábito.

Mas, não se engane: há membros por toda parte. Só fique atento para não fazer confusão: não me refiro àqueles que, com menos sorte na vida, vagam pelas ruas falando alto com desconhecidos ou declamando textos aos berros.

Não! Normalmente, falamos baixo. Não precisamos gritar para sermos ouvidos, embora algumas vezes deixamos de ser compreendidos. Pelos outros, é claro!

A prática existe desde que o homem desenvolveu a linguagem, mas o ato confunde os desavisados: há quem fale com cachorros, gatos e afins. Para muitos, equivale a falar sozinho. Não é!

Quem já teve ou tem um animal sabe que eles, além de compreenderem tudo, também respondem. À sua maneira, naturalmente. Quando não dão retorno, pode estar certo: estão se fazendo de desentendidos.

Assim, seja um bebê, um poodle ou um pé de hortelã, havendo um interlocutor, a prática não se configura. São entes de outras comunidades, assim como aqueles respondendo “Boa Noite!” a apresentadores de telejornal. Também não é o caso de fantasiar um ouvinte. Essa história de amiguinho imaginário está liberada apenas na infância.

Falar sozinho é conversar com você, com sua alma ou consciência — e ponto! Nunca ponto final, claro. Difícil controlar a mania de dar a última palavra, não é mesmo? Além do mais, sempre haverá assunto.

Mas, somos estigmatizados, olhados de soslaio. Nossa! Alguém ainda fala soslaio? Talvez só mesmo quem fale sozinho. Enfim, há um preconceito com os praticantes. Por isso, muitos negam o hábito. Na verdade, deveríamos ser valorizados e por diversas razões.

Quantas vezes você conversou com alguém que mal deu chance de uma resposta? E os que só querem mostrar sua erudição, mas não conhecem o ponto final? Isso, sem falar nos donos-da-verdade.

Pois é! Quem fala sozinho não costuma alugar o ouvido de ninguém com bobagens: além de admirarmos um papo inteligente, somos autossuficientes. Por isso, e que todos nos ouçam, resolvi levantar essa bandeira, e escrever este texto (caso não seja lido, equivale a falar sozinho).

Chega de preconceito!

Se você pertence à comunidade, abandone o anonimato e grite sua condição para o mundo. Liberte-se de disfarces, como fingir estar cantando, rezando ou falando ao celular. Acabe com mentiras do tipo “Não era eu, era o rádio.”

Saiba que estamos bem acompanhados nessa arte, também conhecida como solilóquio. Nossa! Alguém ainda fala solilóquio? Talvez só mesmo quem fale sozinho. Mas estamos bem acompanhados. Querem ver?

A obra mais famosa de Santo Agostinho, em que o filósofo procura comprovar a existência do Criador, é um solilóquio. E o que dizer do solilóquio escrito por Shakespeare, onde um atordoado príncipe exclama “Ser ou não ser, eis a questão!” É ou não é o falar sozinho mais conhecido do teatro?

Naturalmente, ao falar sozinha, nem sempre estou dialogando com minha alma ou consciência. Às vezes, procuro apenas o que passar no pão.

— Requeijão… Requeijão… Será que acabou? E agora? Manteiga ou não, eis a questão!

Verdade é que o assunto em pauta é irrelevante, ou melhor, é só da sua conta. O que deve ser respeitado é o seu direito de conversar com você mesmo, sem ser vítima de olhares recriminadores.

Assim, se alguém vier com a gracinha “Tá falando, sozinho?”, seja firme:

—  Sim, tal qual o Hamlet  de Shakespeare, falo comigo mesmo.

E, se for um chato, complete:

— Ainda não terminei e, como não costumo me mandar calar a boca, conversaremos em outra hora.

Você verá: além de libertador, a prática do solilóquio mantém o espírito elevado. O resto é silêncio.

Primavera, 2015

Ilustração: www.nanihumor.com.br

Martha Gonzalez escreve às quintas-feiras

martha@clubedecronicas.com.br

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