José María, o Peregrino

Em uma ensolarada manhã de verão, acordei tentando espantar os pensamentos suicidas com um banho de água morna. Estava na cidade de um santo e, no desespero, resolvi apelar para ele, São Francisco de Assis. Mesmo incrédula, pedi ajuda a fim de aliviar as dores emocionais com alguma inspiração para continuar seguindo adiante. Bom, não posso dizer um milagre, mas foi uma baita coincidência encontrar José María naquela mesma ocasião.

Normalmente, quando viajo, tenho o costume de me colocar em um canto da cidade para observar o mundo à minha volta e fazer uma análise sobre quem eu sou enquanto espelho refletido naquele espaço desconhecido. E foi assim que percebi, observei e me aproximei daquele peregrino acompanhado de seus dois cachorros. 

José María é um homem com apenas seis décadas de existência, mas com a sabedoria de uma verdadeira enciclopédia viva. De origem espanhola, carrega em uma mochila nas costas o necessário para a sua sobrevivência e a de suas duas cadelas, Savignana e Venus. O seu lar é o caminho e também é neste último onde deseja terminar os seus dias. 

Todavia, antes de se tornar um peregrino, conheceu o mundo trabalhando como cozinheiro a bordo de um navio. Era pai de família e homem com vida material muito bem estruturada. 

Em 2004, após um grave acidente automobilístico, a vida de José mudou para sempre. Dos quatro passageiros no carro, apenas ele sobreviveu. Saiu fisicamente ileso daquela tragédia. Contudo, ficou emocionalmente despedaçado. Mesmo com terapias e medicações, ele não conseguia ver nenhum sentido na vida e decidiu dar um fim a sua passagem pela Terra.  

Então, pilotando uma moto de 1100 cilindradas em velocidade máxima, se jogou contra uma carreta. A moto tombou de lado e juntos, motocicleta e piloto, deslizaram por debaixo do caminhão. Mais uma vez não conseguiu morrer. 

Durante aquele factício momento, quando se sentia livre na certeza da corrida para os braços da senhora Morte, José conta ter visto — enquanto tentava se chocar contra o veículo — uma fumaça que o envolveu como em um abraço. Depois da “peripécia”, levantou-se e, para surpresa das testemunhas do evento, saiu caminhando.

 Andou e não parou mais. 

Decidiu abrir mão de tudo e de todos e colocou os pés na estrada para percorrer caminhos romeiros pelo mundo, permitindo-se viver para descobrir seu verdadeiro eu. 

Com a companhia dos cães, José María faz do caminho a sua casa. Das poucas horas em que passei proseando com ele, os seus contos diversificados renderiam um documentário ou um livro de aprendizados, ensinamentos e muitas aventuras.  A começar pelas questões básicas de segurança e sobrevivência quando se vive na estrada. 

Em termos de comunicação, o peregrino sabe muito bem se adaptar ao meio. José é poliglota e procura ser um instrumento de paz por onde passa. Buscando sempre compreender para ser compreendido, assim como nos versos da oração de São Francisco.

E por falar nele, foi José Maria quem me revelou grande parte da vida do santo. Percorrendo por diversos conventos e mosteiros da Europa, conhece detalhes da biografia de Giovanni di Pietro di Bernardone, venerado pela igreja católica, como São Francisco de Assis. Desfaz parte do marketing santificado da igreja e proporciona uma aula de história sobre a vida de um homem com características peculiares e filosofia de vida diferenciada de uma época distante no tempo, todavia, ainda presente nos dias atuais. 

Nossa conversa me desperta para — ou apenas confirma — a hipocrisia da igreja e de as todas as religiões. E veja apenas um exemplo, São Francisco é considerado o protetor dos animais, entretanto, José María nunca teve permissão para entrar na Basílica do Santo com seus cachorros. É ou não é uma contradição? 

Na praça Santa Chiara, o homem pode ser considerado, por muitos, um incômodo para a beleza daquela paisagem. E, por vezes, alguma autoridade local lhe faz um alerta ou uma advertência lembrando que nem sempre é bem-vindo em todo e qualquer lugar. 

José é homem de pele e vestimentas surradas por todos os advérbios de causa, tempo, modo, intensidade e lugares por onde passou. Homem e cachorros dividem o mesmo espaço, seja a céu aberto ou em um cômodo fechado. São uma família e uma verdadeira trindade. Eles têm o mesmo cheiro. Um odor livre de pejorativos como constatação de que ambos se completam enquanto animais — sejam considerados racionais ou irracionais. 

Os sentidos sensoriais de cada um se reforçam e se revezam. E assim José María se salva a cada amanhecer e anoitecer. Seus encontros com o mundo selvagem são místicos, incluindo até lobos. Uma das cachorras tem descendência desse mesmo mamífero canídeo o que, aparentemente, facilita o contato. 

Em um de seus inúmeros contos, ele lembra da noite quando “perdidos” em uma densa floresta em algum lugar no alto de uma montanha, uma javali acompanhada de seus filhotes cruzou o seu caminho. Para azar e sorte de José, suas cadelas são escudos de ataque, defesa e proteção em quaisquer situações. E foi assim que, enquanto uma sacrificava a vida de um filhote para o sustento do grupo, a outra, em posição de defesa, afastava os animais para longe.

Quando perguntei sobre o que fizeram com o filhote, o homem me respondeu com o semblante mais puro e belo que já presenciei. “Agradecemos por aquele animal ser o alimento que salvava as nossas vidas. Estávamos sem comer há algum tempo”, comenta emocionado.

Então, lembrando dos ensinamentos da avó, contou que fez um buraco no chão, cravou a carne em lanças de pau e deixou a iguaria assando no fogo acendido ali mesmo no meio do mato. A carne estava muito boa e os três comeram tudo até lamberem os dedos — e as patas. 

Há muito para ser contado e compartilhado. Para sobreviver em situações de frio extremo, ele relata algumas maneiras de fazer fogueira em buracos de neve, bem como fazem os inuit, conhecidos como esquimós. Uma história longa e com detalhes técnicos que ainda preciso compreender melhor para traduzir em português. De fato, o ser humano tem incrível capacidade de adaptação ao meio para sobreviver.

José María é um glossário vivo, a cada momento surge uma narrativa em vasta expansão de sujeitos e predicados. E se você já percorreu por algum caminho entre o norte da África e Europa, provavelmente, pode ter passado por esse homem. José se diverte contando ser surpreendido com celebridades interessadas em trocarem um dedo de prosa com ele. Desde a filha do ex-presidente americano George W. Bush a Shakira e outras figuras públicas internacionais. 

Para ele, sua jornada é simplesmente agora. Vive do que se tem para hoje e deixa a vida levá-lo para aonde deve ser guiado. Não tem nenhum destino específico para fincar os pés, só caminha aproveitando a longa trajetória aqui na Terra. Assim, já passou por lugares atualmente banidos do globo terrestre, destruídos por guerra; bem como algumas igrejas e monumentos históricos de boa parte do território da Síria. 

Com esse homem fica claro compreender como é difícil entender a pluralidade perversa do amor e ódio existente no ser humano. Como somos tão inteligentes e ao mesmo tempo tão ignorantes com a nossa própria espécie, destruindo o nosso próprio semelhante em nosso único lar. 

Passaria dias me nutrindo com a sabedoria e experiência de vida desse homem. E quando mencionei a vontade de revelar a sua história para o mundo, ele me respondeu que está de braços abertos para acolher e compartir conhecimento com uma aprendiz. Todavia, com a condição de que devo estar disposta para caminhar e dormir seja onde for, desde em uma casa de amigos, convento, mosteiro ou ao relento. 

De sua mochila retira uma sacola plástica com alguns mapas e depois explica os caminhos para eu ter uma pequena noção de possibilidades. Afinal, para quem também é sobrevivente de acidente automobilístico e atormentada com ideias suicidas, que risco poderia correr ao andar por lugares desconhecidos? Certamente me sentiria muito mais viva.

Bom, José tem um carisma fascinante, talvez seja por isso a boa vontade em fazer amigos por onde passa. Ele se apresenta como um irmão, pai e avô. É fácil admirar seu brilho estampado em um sorriso sagrado refletindo a sua luz em nossos próprios olhos. Entretanto, é preciso tirar os óculos escuros para ver esse peregrino. Até porque, pelas lentes da nossa atual sociedade, esse homem pode ser ignorado e passar invisível por nós, apenas como um maltrapilho. 

A liberdade de escolha em não possuir nada o fez ganhar tudo. Afinal de contas, nas palavras de sua avó, “El amor es lo único que crece quando se reparte”. 

Sim, o amor é o único que cresce quando se compartilha. Eu me despeço desse mestre na incerteza desse dia, mas na esperança de reencontra-lo em alguma estrada da vida para lhe dar um abraço. Algo que não pudemos fazer por causa das atuais circunstâncias “surreais” do Covid-19, o coronavírus. 

Enquanto isso — queira eu crer ou não —, agradeço ao santo por me permitir perceber a sua capacidade do ser perseverar a morte do fazer-se carne. Mesmo confuso, ambos podem coexistir. Depende apenas das nossas perspectivas com nós mesmos e com o outro a partir do nosso coração, olhar e mente.  

 

Novembro de 2020

Fotos da autora – registradas em celular