Logo ali no Pacífico, lá em Cachoeiro

Dias atrás, uma tormenta passou em algum ponto distante do Oceano Pacífico, deixando, ainda hoje, a água agitada. Mesmo com o mergulho suspenso, a pescaria seguiu consentida. E, então, meu parceiro, o capitão e eu partimos do porto de Zihuatanejo, no México, adentrando o mar aberto em um barquinho a motor.

Abrindo aqui parênteses, devo confessar uma loucura lúcida por situações de visível adrenalina. É como se a minha mente reagisse em paz dizendo: “Ok! Se acontecer alguma coisa, é o fim e basta.” Os fantasmas dos pensamentos suicidas se acalmam quando percebem a possibilidade de encontrarem a senhora Morte. É quando tenho a oportunidade de estar presente apenas no momento. Acho isso uma terapia fantástica.

Sobe onda; desce onda. Quanto mais nos distanciávamos da costa, mais gostoso se tornava o vento abrandando o calor daquela manhã ensolarada de junho. Nas vagas largas, altas e espaçadas — sinceramente, nem sei como descrever uma onda —, mesmo com a embarcação subindo ao topo da elevação, a visão da terra ou qualquer ponto no horizonte se perde, deixando aparente somente céu e mar.

Depois, desce, sobre outra vez, em ritmo sincronizado, balanço agradável, durante o “aparecer” e “desaparecer” do dito “Terra à vista!” Deleitável ao meu ver, né? Mas meu companheiro me encara assustado e expressa o contrário.

Mais tarde, mas perto da costa, ainda com o agito das águas, provo nadar admirando a vida marinha do Pacífico. Quando entrei, estranhei temperatura quente, mas logo me senti abraçada pelo oceano.

Bom, quando alugamos o transporte, o moço anunciou “pesca esportiva”, iluminando o sorriso do meu parceiro — em resumo, pescar e devolver o animal para o mar —, enquanto meu interesse era apenas admirar e nadar com os peixes. Mas, em alto-mar, percebemos a pesca como ganho extra. Aliás, por que não usar o turista como mão de obra pré-paga?

Afinal, a região estava farta para peixes grandes. Quanto mais nos distanciávamos, maiores eram, exigindo esforço e experiência. Passei longe das varas de pescar e fiquei na proa. Todavia, depois de algumas horas naquela oscilação, meu companheiro começou a passar mal, enjoos gerados pelo balanço continuado. Enquanto ele se recuperava, me pediram ajuda…

Entenda: nunca tinha pescado na minha vida. O capitão me perguntou se eu tinha pena dos peixes e disse que sim. Ao mesmo tempo, ficou claro o contraste por comê-los. Entretanto, tenho consciência da covardia deste ato e ainda não sei como esclarecer. A verdade é: evito matar até mosquitos.

Ops! O peixe chegou! E, vejam só!, foi pego pela barbatana. Muito estranho. Com ele em minhas mãos, o moço avisou ser de bom tamanho para o almoço. Pedi para devolvê-lo ao seu ambiente natural e, antes de qualquer reação, o belo atum pulou para as profundezas. Respirei aliviada.

Pesquei outros dois de expressivas dimensões, o capitão agradeceu o alimento e, pronto!, parei com a pescaria. Todavia, enquanto segurava a vara de pescar e manejava a linha puxando o primeiro peixe fisgado, senti um momento nostálgico e lembranças distantes surgiram em minha mente.

Lembrei-me da minha infância no Município de Cachoeiro de Itapemirim, ao Sul do Estado do Espírito Santo (lembrado por ser a terra natal do cantor Roberto Carlos). Lá, meus pais, tios, tias e avós maternos frequentavam, de vez em quando, aos finais de semana, o Rio Itapemirim, para pescar. Era uma reunião em família.

Mesmo assim, a milhares de quilômetros de lá, em outro lado do mundo, o cheiro do lodo do rio como que passou pelo meu nariz, enquanto a boca salivava com o sabor dos bolinhos feitos pelas minhas avó, mãe e tias.

Percebi recordações boas da cidade, agora, também do granito e mármore. Morei na terra do Rei, em três diferentes épocas, mas nunca relacionei nada entre elas. Era como se a cada período não existisse um passado. Simplesmente, apagava qualquer vínculo com os anos antecedentes. E, somente agora me dei conta de nunca ter retornado ao lugar onde nasci.

Lembrei da época de ser criança de verdade, quando podia brincar, dançar e jogar, na varanda da moradia dos meus avós ou no quintal de casa. Tinha vergonha, ou medo, do mundo externo e o interno se tornava dispensável naquelas tardes após escola. Aquela sacada, no alto de tudo e longe de todos, permitia me isolar da terra e me deixava mais perto do céu. Cantava e dançava para o infinito:

— É tão bom, bom, bom, bom. Quem quer pão? Pão, pão, pão. Bom estar contigo no meu coração… (Caro leitor, se você nasceu no Brasil, entre as décadas de 70 e 80, provavelmente vai se recordar dessa canção.)

Também lembrei da primeira amável lição de vida, quando minha vó materna me presenteou com uma boneca bebê enorme e eu sequer aguentava carregá-la subindo as escadarias para a casa dos meus pais. Robusta, em seu vestido de linho, com as mãos nas escadeiras, disse:

— Desejou esse presente, agora faça por merecê-lo. Você consegue carregar essa boneca. Tome cuidado com o que você pede…

É a única representação da minha avó materna antes de vê-la tendo derrame cerebral e nós tentando socorrê-la. Mais tarde, estaria entrevada em cima de uma cama, resmungando, xingando sem dizer palavras, mas múrmuros, sofrendo por não ter superado a traição e separação do marido. Como um vegetal em um leito, passou a morar na Cidade de Marataízes (a praia dos cachoeirenses, dos mineiros…), em um barraco de chão de terra batida e emendas de telha de amianto no teto.

Naquele pequeno espaço, a vida passou a ser dividida com duas filhas, um genro e três netos. Aquela mulher era cuidada pela primogênita e caçula. O banho era com a água doada pelos vizinhos. Não havia banheiro, nem eletricidade. A comida era preparada no fogão constituído por quatro lajotas dispostas no chão.

Quiçá seja quando passei a notar o ser humano e despertar interesse por conhecer o próximo. Naquele cômodo, a senhora Morte tomou minha vó brutalmente pelos braços, enquanto minha mãe e tia tentavam acudi-la para a vida. E eu ali, perplexa, — quero dizer, meus irmãos e eu — observando tudo.

Quando vivi no bairro Vila Rica, em Cachoeiro de Itapemirim, lá perto do ponto final de ônibus, amava estudar no Colégio Anísio Ramos. Tempos de uniforme — jardineira rosa e saia azul pregueada com blusa branca —, e das professoras tia Eliane, no pré; e tia Donília, na primeira série. Depois, só lembro do dia em que meu pai apareceu na escola, conversando com a professora e diretora. Saí de lá sem poder me despedir de ninguém. Nunca mais voltei.

Fui embora da Vila Rica magoada. Só percebo isso agora. Tudo porque implorei para os meus pais não venderem a nossa casa — o novo negócio faliu e a família perdeu tudo em dívidas etc. e tal. Em minhas memórias de criança, o jardim entre a casa dos meus avós, parentes e pais, tinha árvores, flores, frutas, pássaros, pedras e uma pequena cascata (talvez era só uma bica d’água — sabe bem como é imaginação de criança, né?). Mas, para mim, aquele lugar tinha vida.

Quando cheguei a Marataízes para morar, local onde passávamos férias de verão, odiei aquele lugar até o dia em que pude “fugir” de lá.

Apesar desse comportamento infantil, na mudança para o litoral fui obrigada a ser um adulto enquanto eu ainda era uma criança — aprendi essa descrição depois de algumas sessões de terapia. Fomos obrigados (meus irmãos e eu) a driblar os obstáculos da vida no mesmo momento em que buscávamos compreender as combinações das letras do alfabeto.

Antes, Páscoa, Dia das Crianças e Natal eram celebrados com fartura. Podia-me lambuzar com Danoninho, porque as minhas tias eram bonitas e vaidosas e, aos finais de semana, passavam alguma coisa cremosa no cabelo e eu também queria ter aquilo nas minhas madeixas. A minha mãe ainda usava salto alto e o meu avô materno era um homem muito elegante.

Depois da Vila Rica, alimentação e moradia passaram a ser bens escassos. E, assim, aprendemos a ser camaleões, camuflando-se conforme as condições adversas de local e tempo. Também ganhamos a habilidade de se locomover rapidamente, trocando de escola conforme o semestre. Perdia as minhas raízes e, quando tentava infiltrá-las em algum lugar, eram arrancadas a força. (Talvez esse parágrafo mereça uma crônica a parte.)

Bom, em pleno Oceano Pacífico, percebi a saudade do Cachoeiro de Itapemirim que tentei apagar da memória. Passaram-se quase 30 anos desde a minha saída da Vila Rica. Morei na cidade em outras ocasiões, mas nunca regressei àquele bairro. Parece que, de alguma forma, inconscientemente, quis preservá-lo como um lugar intocável onde as minhas reminiscências são de menina sendo criança.

Ao mesmo tempo, hoje reconheço ter me tornado quem eu sou exatamente pelo meu passado. E, por causa disso, sou imensamente grata aos tempos de Cachoeiro de Itapemirim e Marataízes. Se não fosse por tudo que passei naquelas duas cidades, quiçá jamais teria me despertado para conhecer o mundo no descobrimento de mim mesma. Hoje, minhas raízes são facilmente adaptáveis a qualquer lugar e, a cada ano, estão se tornando mais fortes para superarem as condições climáticas, seja qual for o terreno.

Portanto, foi logo ali no Pacífico quando eu pude me compreender lá em Cachoeiro de Itapemirim. Talvez um dia eu seja capaz de visitar a Vila Rica, e sei que o intacto e breve mundo de criança permanecerá apenas em minhas memórias. Contudo, agora posso tocá-las sem me ferir profundamente ou sentir tanta dor. Pelo contrário, elas me ofertam o intrigante e atraente paradoxo do balanço do mar.

Bom, hora de ancorar na Playa Las Gatas. Uma família vai preparar, para o almoço, um atum que pescamos. Afinal, depois ter feito, em partes, as pazes com o passado, posso celebrar e compreender o significado de se nutrir do próprio peixe pescado.

E, quem sabe, agora, o trecho da música dizendo “a gente sabe que viver é muito mais que uma aventura… Um dia a gente vai crescer, do mundo a gente toma conta” seja de fato tão bom.

Junho de 2018

Foto: Thierry Meier em Unsplash

Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.