O velório da matriarca

(por Sérgio P Silva) Dona Dalvinha morreu aos 90 anos, às 10 horas da manhã de uma quarta feira. Morreu em casa, um apartamento de dois quartos num prédio muito antigo de três pavimentos situado à Rua Teodoro da Silva, bairro de Vila Isabel no Rio de Janeiro. Residia ali há 60 anos, desde que se casara com o falecido Mário. A velha foi uma boa esposa e era boa gente, mas tinha lá os seus defeitos e rabugices; era possessiva, era ciumenta. Não concordava com o casamento dos filhos, em parte porque não queria que saíssem debaixo de suas asas e em parte porque sentia um ciúme inconfesso das noras, pois achava que essas não eram suficientemente boas para eles. Nos raros momentos em que a família se reunia, era sempre sarcástica e debochava em surdina das roupas e atitudes destas. Criticava também a filha solteirona, imputando a culpa da solteirice a sua falta de iniciativa, dizia:

– Encalhou porque quis. Se me ouvisse não tinha encalhado.

Os órfãos eram; Madalena, a mais velha, a solteirona que ainda residia lá e cuidava da mãe; Mário, o Mariozim para os íntimos, empresário bem sucedido do ramo automobilístico e Marcílio, funcionário subalterno da prefeitura.

Mariozim era casado com Dayse, tinha dois filhos adolescentes e morava num condomínio luxuoso na Barra da Tijuca. A família fazia o tipo “nouveau riche”, gente que se estabeleceu naquele bairro nas décadas de 80, 90, com pouca cultura, nenhuma educação e muito dinheiro no banco.

Marcílio era casado com Ediléia tinha também dois filhos adolescentes e morava num apartamento alugado em Ramos. Como era funcionário de nível hierárquico muito baixo, ganhava pouco e levava uma vida muito simples.

No dia do falecimento aconteceu que todas as capelas do cemitério do Caju estavam ocupadas obrigando a família a velar o corpo em casa, como se fazia antigamente.

Madalena lamentou o fato, mas pôs-se aos preparativos; primeiro vestiu a velha com seu melhor tailleur, um marrom que ela usava nas festas. Calçou-a com seus melhores sapatos, também marrom, de salto baixo que ela tanto gostava. Depois, com a ajuda de alguns vizinhos, dispôs a mesa no centro da sala, as cadeiras lateralmente encostadas às paredes e colocou o corpo hirto e esquálido sobre a mesa, acendendo uma vela em cada canto da mesma.

Feitos os arranjos passou a aguardar a chegada dos irmãos, a quem já informara sobre o incômodo do velório.

Marcílio e Ediléia, apesar de terem ido de ônibus, chegaram primeiro levando a reboque os filhos. Consternados, deram-se os abraços de praxe e se acomodaram nas cadeiras do lado direito. Os jovens tímidos do subúrbio, para quem a morte da avó tinha algum significado, meio desorientados sem saber pra onde ir, aconchegaram-se ao lado da mãe e dali não saíram mais.

Mariozim e Dayse também acompanhados dos filhos chegaram com espalhafato desembarcando de sua exuberante SUV com para-choques cromados, chamando a atenção da vizinhança do velho prédio. Falavam alto, reclamando do calor e dos três lances de escada que teriam que encarar. O motorista cuidou de estacionar o carro.

Cumpriram o mesmo ritual dos outros familiares que os antecederam, cumprimentaram desdenhosamente o casal Marcílio e acomodaram-se do lado oposto a estes.

Não dando a menor atenção aos primos pobres, os meninos de Mariozim sacaram logo seus celulares de última geração e enfiaram a cara neles, esquecendo-se do entorno. Mariozim também sacou seu celular e ficou zanzando pela sala fazendo ligações, talvez de negócios ou quem sabe para a amante desmarcando o encontro por causa da chatice do velório. Dayse vestida inadequadamente para o clima da região, com um caro conjunto de calça e jaqueta de couro preto, preferiu manter-se isolada e, renegando seu passado suburbano de Bonsucesso, decidiu que não tinha o que conversar com aquela gentalha paupérrima de subúrbio. Recostou-se à janela, sacou um cigarro e ficou tragando observado o movimento infernal de carros na rua às duas horas da tarde.

Do outro lado Ediléia observava, também com desdém, a loura de negro e pensava:

– Quem essa perua pensa que é? Tomara que derreta nesse calor.

E não deu outra. O tempo foi passando chato, como sói ser em qualquer velório, e o sol da tarde começou a bater em cheio no prédio, ligando um maçarico imaginário. Os dois pequenos ventiladores que Madalena colocara estrategicamente nos cantos da sala, estavam longe de dar conta do recado. A encouraçada Dayse já não encontrava mais posição em lugar algum. Sentia o suor descer-lhe pelas costas, entrar pelo cós da calça, penetrar no rego e continuar descendo pelas coxas. Gotas de suor pingavam do seu comprido cabelo oxigenado, aumentando o abafamento em sua cabeça e levando-a a lamentar-se por não ter feito um corte mais curto. A toda hora lançava olhares de socorro a Mariozim, que nem aí, continuava zanzando grudado ao celular.

O calor era tanto que parecia que a defunta suava. Começou então a escorrer um líquido amarelado do nariz do cadáver, obrigando Madalena a tampar os orifícios com duas pelotas de algodão.

O casal Marcílio também sofria com o calorão, mas mais habituados a tais temperaturas, pois moravam num bairro talvez mais quente ainda, deu seu jeitinho. Os meninos, sem cerimônia, pediram licença à tia e tiraram as camisas. Marcílio abriu dois botões da blusa e Ediléia passou a abanar-se com a tampa de uma caixa de sapatos que encontrou no quarto.

O estoque de água gelada da casa, que se resumia a duas garrafas, logo se esgotou. E como Madalena nem a mãe tivessem o hábito de usar gelo, não havia nenhum estocado em casa foi, portanto, obrigada a se socorrer com os vizinhos. Terminou também o estoque de água filtrada e tiveram de  conformar-se a beber água da torneira.

Lá pelas seis horas os meninos de Mariozim sentiram fome, e fome de adolescente é sempre drástica. Madalena, prestativa, tentou resolver o problema:

– Tem pão. É de hoje de manhã que mamãe rejeitou, coitada, acho que já era o prenúncio do que viria. Esquento no forno e passo uma manteiga pra vocês.

É claro que rejeitaram o pão da defunta. Mariozim lembrou-se então do motorista:

– Pode deixar que resolvo isso. Ligo pro Jefferson (o motorista) e peço pra ele trazer uns sanduíches do Burger’s King.

Só que o telefone do Jefferson só dava fora de área. Pensou com seus botões:

– O f.d.p. deve estar comendo alguma vagabunda por aí usando o meu carro.

Como nada está tão ruim que não possa piorar, faltou luz e não se pôde contar nem mais com os ventiladorezinhos. Um breu se fez no prédio e na rua. Na sala só a luz das velas já pela metade em torno da morta, e as luzinhas dos visores dos celulares dos meninos. Madalena foi buscar as velas que restavam e ao voltar avisou:

– É bom essa luz voltar logo, pois as velas da mesa estão acabando e eu só tenho mais duas. Se não voltar ficaremos no escuro.

Entrementes Mariozim, safo, desceu a escadaria usando a lanterna de seu celular e descobriu com pessoas na rua que um carro havia batido num poste derrubando um transformador:

– Gente, vai demorar pra consertar.

Quase meia noite os primos da Barra com fome e não tendo nada pra fazer, começaram a implicar com os primos do subúrbio a ponto de que se os pais não interviessem, o pau ia comer. Era um bom pretexto para baterem em retirada:

– Madalena temos que ir, os meninos têm aula amanhã cedo. Deus há de receber bem Dona Dalvinha lá em cima. Adiantou-se Dayse.

E aproveitando logo para se livrar do desagradável compromisso do enterro no dia seguinte, concluiu:

– Amanhã não vou poder comparecer, tenho um compromisso inadiável, mas Mariozim estará lá representando a família.

Enfrentaram o breu da escadaria usando as lanternas dos celulares, e ao entrarem no conforto refrigerado do carrão que Jefferson estacionara na porta do prédio, respiraram aliviados, pois sabiam que a velha não morreria duas vezes e passar por aquele sufoco, nunca mais.

Por outro lado Marcílio apiedou-se da irmã e decidiu passar a noite velando junto com ela. Deu algum dinheiro para Ediléia e recomendou:

– Vamos descer que coloco vocês num taxi. A esta hora pela Brasil, em vinte minutos estão em casa. Eu fico e faço companhia à Madalena.

E derramando seu fel, se D.Dalvinha pudesse falar  diria:

– Quando será que teremos outra agradável reunião de família como esta?

Sergio P Silva é cronista/contista convidado do Clube de Crônicas

Imagem:liegaby.deviantart.com

 

 


 

 

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