Onde está a beleza da vida?

Em pé, na popa do barco de madeira, ele para com o olhar no horizonte, coloca a mão esquerda na anca e, usando a direita, coça o alto da cabeça. Com o balanço da maré, o golpe rasteiro da mente declara uma traição do cérebro. Estamos no meio de um oceano de águas verdes cristalinas, como esmeraldas.

Quando me encontra com o olhar, ele pergunta se estou com os pés-de-pato. Boiando em superfície transparente, abro a mão, junto o dedo indicador com o polegar e confirmo a resposta em positivo, assim como na linguagem de mergulho. Enquanto aguardo, observando e brincando com os peixinhos ao meu redor, ele volta algumas vezes lamentando-se esquecer algo.

— Você sabe onde deixei a…? — deixa a frase no ar. Eleva as mãos no rosto e passa pela cabeça.

Da proa, meu parceiro — homem apaixonado por barcos, mas sem inclinação para o fundo do oceano — diz que a máscara está no banco, ao lado dos equipamentos. Assim, ele para de novo, dessa vez com o ar de perdido e diz que está esquecendo algo, mas não sabe o que é. Volta a perguntar sobre a minha máscara e os pés-de-pato. Respondo em positivo e aceno para os equipamentos na água.

Seria a minha primeira submersão em mergulho livre, segurando a respiração, para ver uma ostra com uma pérola. Nesta região, as conchas são protegidas e é um presente ver de perto algo tão precioso. Entretanto, quando se chega perto de uma ostra, ela se fecha. Bom, talvez esteja aí o encanto de uma pérola.

Por agora, posso dizer que o mar faz bem, porque foi com esse senhor que ganhei confiança nas águas. Ele é um daqueles homens “metade peixe”: conhece cada pedacinho deste lugar. Foi ele quem me ensinou o necessário para explorar algumas partes do oceano, mesmo sozinha. Um risco maravilhoso ainda a ser aprimorado, se assim posso dizer.

Mas é também neste paraíso que percebo o amigo esquecer os primeiros substantivos. Exatamente aqueles pelos quais ele manifesta grande paixão. Todavia, restam outros para contar sua história, relatos de quem acatou os ensinamentos da família para ser graduado em Economia por uma renomada faculdade italiana.

Fez carreira para atender desejos. Quando se aposentou, foi dedicar-se integralmente ao seu verdadeiro amor: a arte. Mas o mar sempre esteve ao lado, principalmente nos períodos de férias. Explorou quase o mundo inteiro, e continua visitando novo lugares a cada ano.

Ainda que as palavras escapem de sua boca, ele tenta se agarrar nas lembranças com os adjetivos. Senhor C é um homem com histórias para contar. Reinventou a vida de um modo único, pelo qual ganhou o nome de “personagem”. É assim que ele é conhecido por todos nós. “Ele não é comum. É um personagem da nossa atual aula de História” — costuma-se dizer.

Convivendo há mais de 40 anos com sua parceira, forma um casal atípico. Daqueles que não precisam casar, muito menos ter filhos e, mesmo convivendo em uma casa organizada por ambos, optaram manter a individualidade em lugares separados. Um modo prático e saudável para manter a vida a dois. E foi assim que me identifiquei com eles.

Com Senhor C, pude falar, sem medo e sem receio, sobre projetos de vida. Com ele, compartilhamos, sem temor e livre de julgamentos, o nosso desejo por reestruturar uma casa antiga para que outras gerações (provavelmente desconhecidas por nós) mantenham a memória de um lugar escolhido e amado por dois estrangeiros de diferentes nacionalidades.

— Vocês estão indo bem. Mas só os vejo trabalhando. Quando vocês terão tempo para curtir a vida? Aproveitem enquanto ainda são jovens… Ou vão deixar para quando já estiverem velhos assim como eu? — reflete sempre em modo irônico a si próprio.

Bem, quando a gente encontra alguém que se parece com a gente, no modo de ver o mundo, sentimos um alívio: são ensinamentos da arte em memória viva. Quanto tempo estaremos aqui? Não sei. Não temos contratos nem amarras. Quem sabe, o suficiente para construirmos o que podemos perpetuar? Sonhamos que seja algo de bom a ser compartilhado com a humanidade.

Juntos, acreditamos que filhos podem ser sementinhas plantadas em diferentes maneiras pelo mundo inteiro. E, assim, sem nenhum tipo de represália, pude enfim dizer: “Com tanta criança no mundo, por que não ajudar as que já existem neste planeta? Que tal a consciência plena para qualidade de vida e igualdade de direitos e deveres para todos aqui já existentes?”

Claro! Vale lembrar que, expressar ideias, ou sugerir questionamentos, podem nos levar a um campo minado com explosão de bombas de nível pessoal. Todavia, neste contraste em território estrangeiro, nos sentimos livres para ser quem somos. Talvez porque, no melindre e hipocrisia das reações adverbiais daqueles de mesma nacionalidade, perdemos o nosso verdadeiro eu.

Apaixonado por arte, Senhor C é o primeiro indivíduo que conheço com uma obra de Cornelis de Brier em casa. Quero dizer, com várias peças raras de valores inestimáveis. Há uma casa decorada de modo a lembrar um museu. Quando se livrou da Economia, a Arte ganhou espaço total na sua vida.

Senhora M é uma mulher “da cidade”. Costuma exacerbar algumas irritações com a nossa “vida de solitários”:

— Vocês são pessoas particulares, quase ermitãos. Quem vai querer viver o ano inteiro naquele fim de mundo esquecido há séculos? E se acontece alguma coisa…? — costuma dizer e se contradizer ao manifestar o respeito por nossas diferenças.

Quantas vezes, quando eu vivia sozinha na montanha e trabalhava na Osteria, ela me ligava para perguntar se eu gostaria de “algo da cidade”. Grava tudo na mente. Ainda mantém o costume de me perguntar se desejo alguma coisa da capital e fica emocionada toda vez que me vê de salto alto na cidade.

— Senhora M, vivo entre diferentes mundos. Nasci e cresci perdida nos contrastes das periferias e palácios das cidades. Atravessei um oceano para encontrar um lugar e chamá-lo de lar…

Ela me observa e completa, quase sempre:

—  Eu sei! E encontrou nas palavras o seu mundo. Então, viva! Publique as suas palavras e elas ganharão vida. Eu amo as palavras, estão aqui comigo. Elas são como guardiãs do Universo! Lembre-se disso.

E gira o corpo no seu jeito típico, acrescentando em voz alta:

— Essa menina precisa ver o Sol! — solta quase em clemência para todos rirem quando os corações estreitos ameaçam trincarem pelo Senhor C.

Enquanto Senhor C ironiza a preocupação da companheira, os nomes das obras despencam da mente dele e se espatifam no chão. Os cacos são recolhidos e ajeitados pela vivacidade de Senhora M. Ela me confessa, sussurrando, com um olhar de fortaleza:

— A partir de agora, devo conjugar o verbo no presente para nós dois.

De fato, o Senhor C não percebeu o golpe do próprio cérebro.

Para quem os vê, são seres simples. Discretos no modo de viver, sem extravagâncias como se costuma ver por aí. Por isso, o apenas ser não importando o ter ainda me encanta neste mundo de aparências.

Este personagem da vida real, chamado Senhor C, me faz lembrar um dos filmes mais belos e profundos que  já vi. Ainda morava no Brasil quando assisti, no cinema, a película “Poesia”, dirigido por Lee Chang-dong, com Yoon Jeong-hee.

Mija, interpretada por Yoon Jeong-hee, procura poemas com um caderninho na mão, para anotar as palavras na esperança de encontrar a poesia em algum lugar. Senhor C me recorda a conversa de Mija com a médica, relatando a importância dos substantivos.

Assim, nestes últimos meses, observando a censura escancarada e contínua das palavras no livro da vida deste meu amigo, tento saber onde está a beleza da vida? Como encontrar o belo naquilo que nos consome? Como esquecer o esquecimento? Como ignorar a mente, o corpo e a alma inertes na corrente de água para o precipício da cachoeira chamada morte?

Sabe? Quando não nos sentimos parte do todo, as ondas do Oceano Vida cospem nossos corpos em ilhas desertas para nos encontrarmos e sobrevivermos enquanto seres humanos. E com estes personagens reais aprendemos a evitar dar tanta importância ao que pensam ou dizem de nós. São confusões entre substantivos e adjetivos. Você conhece a diferença? Bom, devemos apenas ser. Ou seja: saber quem somos de verdade.

Porque, se questionarmos o que somos, o que queremos, quais as nossas habilidades e qual o nosso verdadeiro propósito aqui na terra, descobriremos que a beleza da vida está no presente, em sabermos viver intensamente este momento. Na Poesia Vida, os substantivos são intransferíveis. Vivendo o agora, eles serão únicos e plenos em cada letra deste alfabeto chamado hoje.

Abril de 2017

Foto: Martin Sattler 

Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras

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