Ônibus 220, 42 graus

Purgatório do Fedor e do Caos

(Por Sergio Silva) Finzinho de tarde de um dia qualquer no escaldante verão do Rio de Janeiro. Pego o 220 na parada final que ele faz na Candelária. Ponto final agora só na Usina, ali no centro ele dá só uma paradinha rápida de uns cinco minutos, o suficiente para o fiscal da empresa fazer suas anotações e o motorista fazer um pipi.

Tenho em mãos um Guimarães Rosa, Sagarana (que, não sei por que, escapou-me quando das minhas leituras pelos clássicos), um Saramago, um romance chamado Terra do Pecado, que descobri ser o primeiro escrito pelo grande Nobel e um Cristóvão Tezza, O Filho Pródigo, tido como sua obra mais relevante (virou até filme), que tomara emprestado à biblioteca do CCBB, que fica próxima dali.

O ônibus estava ainda vazio, muito embora por ser quase hora do rush, locupletava-se rapidamente. Por ser um dos primeiros a entrar, ainda consegui sentar-me no meu lugar preferido (tenho mania de sentar no mesmo lugar nos ônibus, não sei se devido a manias da velhice ou quem sabe a um TOC incipiente), um lugar reservado para idosos, um assento na terceira fileira do lado esquerdo, atrás do motorista.

Enquanto aguardava a partida, folheava os livros e ansiava, enquanto lia as orelhas, mergulhar em seu mundo. Foi quando me chamou a atenção um sujeito que galgava com muito esforço a escada traseira do ônibus (no Rio, deficientes têm direito à gratuidade, por isso alguns entram pela porta traseira evitando assim a roleta).  Não tinha um dos braços, ou o que restava de um deles estava metido por debaixo de uma camiseta cinza, que àquela já pouca luminosidade do dia, não se distinguia se era sua cor original ou um cinza causado por sujeira. Apoiava-se em uma muleta que caía a cada tentativa que fazia de subir nos degraus. Por fim um sujeito ajudou-o a subir e ele, claudicante, conseguiu instalar-se naquela cadeira solitária que fica no lado direito, à frente, próxima à porta dianteira.

Observando melhor a figura quando passou por mim, notei que seu aspecto geral era o pior possível, assemelhava-se mesmo ao de um morador de rua; o cabelo sem corte há muito tempo, era uma pasta gosmenta, a barba, esfarrapada e esbranquiçada, causava repugnância, as pernas (uns gambitos) enegrecidas por sujeira acumulada de vários dias sem banho, trajava a já referida camiseta de cor indefinida, uma bermuda negra e lodosa e calçava havaianas com as solas praticamente inexistentes na região dos calcanhares. Também percebi que exalava um nauseabundo odor. Mas, pensei politicamente correto contemporizando, mesmo causando aquela aversão toda, era um ser humano e tinha todo direito de viajar naquele veículo que se especificava como coletivo, os incomodados que se mudassem.

Logo fui obrigado a abandonar minha observação, pois rapidamente todos os lugares sentados e em pé estavam ocupados, o ônibus lotou, portanto o estranho ser automaticamente saiu de meu campo de visão. O motorista voltou do seu xixi e deu a partida. Estranho era que embora alardeado em letras garrafais azuis no para-brisa dianteiro, o ar condicionado não estava ligado e com aquela gente toda ali dentro e as janelas fechadas e lacradas como acontece nos ônibus dotados de refrigeração, em poucos minutos o calor senegalesco do Rio fez-se presente e tornou-se insuportável. Alguém questionou o motorista: “Ei piloto. Liga aí o ar cara, tá brabo aqui dentro”. No que o “piloto” respondeu com desdém: “Não dá, tá pifado”. De imediato um sujeito grandalhão de terno, já com uma “pizza” em cada sovaco reagiu: “Como tá pifado? Este carro então devia estar recolhido à garagem”. E ainda outro lá do fundo: “Ou tu dá um jeito ou nós vamos quebrar as janelas. Não dá pra viajar nesse forno”.

O motorista fingiu que não ouviu e resolveu seguir em frente, mas quando parou e abriu a porta dianteira para a entrada de um novo passageiro é que a coisa complicou de vez, pois ao abri-la entrou uma rajada de vento que imediatamente carreou para dentro do veículo e espalhou o bodum que emanava do tal mendigo deficiente.

O cheiro, mistura de suor com merda, logo tomou conta de todo o interior do ônibus tornando impossível permanecer trancado ali dentro por muito tempo. Em instantes ouviram-se gritos, socos nas janelas na tentativa de abri-las ou quebrá-las, palavrões e ameaças à integridade física do motorista. Um cara pulara a roleta e já enfiava o dedo na cara deste apresentando a solução: “Já que não dá pra ligar o ar nem abrir as janelas, então tu encosta que vamos botar esse fedorento pra fora.”.

Sem outra opção ele resolveu obedecer e parou o carro enquanto alguns, os mais exaltados, já se aproximavam para obrigarem o repugnante a descer.

A essa altura estávamos na Avenida Presidente Vargas no trecho entre a Praça Onze e a Prefeitura. Parado o ônibus, tudo parecia encaminhar-se para um acordo; combinou-se que com o fedorento na rua, prosseguiriam com as duas portas abertas o que propiciaria uma corrente de ar que talvez tornasse a viagem suportável, mas…

Entrou na parada a obscena cena carioca do dia a dia: de repente o mendigo do fedor deixou de ser deficiente, levantou-se lépido, e surgiu de sob a nojenta camiseta cinza-sujeira um braço em perfeito estado, cuja mão portava uma arma, que a mim, com meu total desconhecimento de armamentos, me pareceu ser enorme.  Em seguida ordenou com voz firme ao motorista: “Tu não sai com o ônibus se não te mato”.  Imediatamente a turma que se dirigia a ele com o intuito de expulsá-lo, estacou e recuou. Ouviram-se gritos de algumas mulheres mais sensíveis e choro de crianças os acompanharam.  Mas deixa estar que (como diz o dito popular; nada é tão ruim que não possa piorar) do fundo do ônibus surgiu um comparsa empunhando uma arma também enorme. Na outra mão trazia uma sacola de supermercado, e aos gritos os meliantes ordenaram que todos colocassem ali dentro seus celulares.

É o Rio de Janeiro gente, e isso infelizmente é rotina por aqui. O da sacola questionou-me sobre o conteúdo da sacolinha em que eu transportava os livros, mas ao tomar conhecimento deste, avaliou-o com um olhar de asco e dispensou-o. Certamente em sua vida pregressa não teve a oportunidade de ser apresentado a tais objetos, se o tivesse, talvez não estivesse ali empunhando uma arma.

Fora alguns chiliques, ninguém se feriu. E quando os bandidos se foram, todos, aparvalhados, se entreolhavam com cara de conformismo e a viagem prosseguiu em silêncio como se nada tivesse acontecido.

Perdi meu celular, mas o mais importante para mim ainda conservava ali na sacolinha que agarrava junto ao peito.