Operação Lava a Seco

Essa história de falta d’agua está me deixando de cabelo em pé. Falar que o Governo não fez o dever de casa e, agora, a população, além da culpa, ficou com a responsabilidade de economizar é chover no molhado. Racionamento e aumento de tarifas foram algumas das medidas tomadas pelos donos da caneta. Mas, até onde podem ir os administradores públicos?

O alarme soou na minha cabeça, no salão de beleza. Enquanto enxaguava os fios, Marcos, rindo, avisou:

— Você tem muito cabelo e, agora que está comprido, terei que cobrar dobrado.

Aquela brincadeirinha embaraçou minhas ideias, que nem sempre são tão longas como as madeixas. Mas se, além de que tipo de shampoo usar, pensamentos assim passam pela cabeça do cabelereiro, imagina o que pode surgir das mentes lavadas, enxaguadas e brilhantes dos nossos governantes.

É bom ficar com as barbas de molho — ainda que isso, hoje, soe como um desperdício —, pois a criatividade para tirar nosso dinheiro não tem limite. A sede histórica de criminalizar comportamentos para criar impostos arrumou um bom álibi: a falta d’água. Não tarda, pessoas com cabelos compridos, como eu, serem tratadas como suspeitas.

Quase chegando em casa e sou parada pela blitz capilar.

— Documentos, por favor.

— Aqui, senhor.

— Quando foi a última vez que a senhora lavou os cabelos?

— Há uns três dias — respondo, engolindo seco.

— Mas tá muito soltinho — afirma o policial, com ar debochado.

— É… É… É que eu não fui à ginástica, não fiz atividade física que pudesse suar. Por isso, parece recém-lavado.

— Ôôôôô Mendooonça — grita para o outro policial. — Traz o cachorro para dar uma checada aqui na madama. Vamo vê se ela tá limpa, e, passando a mão nos meus cabelos:

— Diz para mim: aqui tem brilho ou não tem, Mendooonça?

“Só faltava essa… Pagar imposto por brilho” — penso baixinho. “Droga! Por que não coloquei um boné?”

Mendonça vem como um animal, digo, com o animal que, após fuçar minha cabeça, solta um uivo longo. O cachorro do policial faz uma cara séria, olha meus documentos e sentencia:

— Sua Carteira de Identidade é final zero. Então, hoje não é dia da senhora lavar a cabeça e, segundo o cachorrinho aqui, a madama acaba de sair do chuveiro. Usou até condicionador! Tsc, tsc. Na época em que vivemos, francamente, o que a senhora tem na cabeça?

— Caspa — minto, para ver se tem algum atenuante. — Por isso precisei lavá-la. Não vai mais acontecer. Por favor, me libere, ando muito nervosa com esse racionamento. Minha saúde está por um fio…

— Um fio limpinho, lavado e escovado, né? Não há desculpa. A senhora infringiu a lei. Essa juba toda deve gastar uma água medonha. Me acompanhe à delegacia.

— Estou presa?

— A senhora e seu cabelo. Tome esse elástico e algeme as madeixas.

Apavorada, tento um acordo.

— Será que não podemos conversar, não há nada que eu possa fazer…

— A senhora tá falando em molhar a minha mão?

— Eu não colocaria nesses termos. Talvez um auxílio para molhar a garganta, uma cervejinha…

— Que isso? A senhora assim me ofende.

— Desculpe. Desculpe. Eu… Eu, realmente, sou contra esses acertos. É que a possiblidade de ir presa… Me desculpe, mesmo.

— Cervejinha é coisa pequena. Mas, se a senhora ajudar na água das crianças, tem jogo.

(Verão de 2015)

Ilustração: Google Imagens

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