Os brasileiros de Uqbar

(Por Eduardo Selga)

Eduardo SelgaAinda ontem, antes de alcançar a inexistência temporária que o sono nos garante, recebi a visita argentina de Borges — o Jorge Luis —, e ficamos a ler juntos e apartados pelo silêncio, cada qual em seu mundo particular, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, conto no qual civilizações imaginárias são narradas com tamanha perícia que o leitor mais desarmado ou ingênuo de repente passa a ter certeza da existência real de tais lugares. Noutras palavras, a ingenuidade das certezas absolutas encontra terreno fértil por causa do discurso hábil.

Sorri, muito cúmplice da perspicácia do autor, mas ele fingiu não ter percebido. Resolvi emudecer minha quase tietagem, para evitar uma das piores sensações que conheço — o ridículo. Ato contínuo, achei de bom tom fazer uma cara de inteligência, tentar produzir ao meu redor uma aura, um ambiente no qual o meu visitante inesperado se sentisse mais à vontade e menos arrependido de ter vindo.

Acho que somos mesmo fruto do meio, em parte. É que, tão logo acomodei a máscara, a atmosfera criada me fez ver que nós, o Brasil, somos um país inventado. Um achado. Trata-se de uma invenção territorial, na medida em que o Estado português desenhou o espaço a partir do sequestro das culturas indígenas. Mas é a urdidura identitária que mais me chama a atenção.

A ideia do que seja o sujeito brasileiro foi aos poucos construída, amalgamada nalguns mitos civilizatórios, e de tal modo que nós não sabemos quem somos. Quando muito, projetamos em nós e no ambiente uma ideia estereotipada, que é resultado dessa construção ideológica, reforçada pelos meios de comunicação e cultura de massa.

Os brasileiros somos quem? Habitantes de Uqbar sem nos dar conta disso? Uma cultura multifacetada ou culturas dentro de outra, dominante, altissonante? Talvez não ocupemos ainda nosso lugar no mundo, se essa pretensão for justificável, por estarmos atrelados a essa eterna crise de identidade a nos perseguir.

Tenho a sensação de que quando nos olhamos no espelho, enxergamos um discurso, não uma face. Ou um rosto maquiado a ponto de a expressão se ocultar. Como se houvesse ruge e pó compacto em demasia. Nesse sentido, os espelhinhos portugueses, presente de grego, fazem efeito ainda hoje: nossos indígenas se deslumbraram com a desconhecida imagem de si próprios; nós nos encantamos e até nos decantamos com a imagem que fazemos de nossa imagem, projetada no espelho que nos deram desde a instauração do Brasil.

Esse espelho distorcido, lembrando os existentes em parques de diversão, possui alto poder de convencimento sobre nós, os outros. Acreditamos, por exemplo, que não somos irmãos dos povos da América do Sul. Ainda que não confessemos isso. No máximo, primos. Antes, somos uma espécie de povo melhor, privilegiado. Por isso em vários níveis não trocamos ideias com nossos hermanos, não batemos aquele bom papo que só as comadres conhecem, encostadas nos muros de seus quintais. Não trocamos receitinhas de bolo, não tomamos um cafezinho despretensioso com nossos vizinhos.

Talvez por isso Jorge Luis Borges tenha evitado retribuir meu sorriso de admiração. Não é aconselhável misturar-se a arrogantes, afinal. Acredito tenha sido por isso que ao fim do último parágrafo ergueu-se e, cauteloso, sem dizer palavra despediu-se, atravessando a porta do quarto e me deixando a sós com a pergunta: quem é o narrador dessa ficção chamada Brasil, da qual nos comportamos como personagens?

Foto: Angelica Dass – culturainquieta.com

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