Porto Seguro

Recentemente, viajei para Porto Seguro, cidade localizada no Sul do Estado da Bahia, a trabalho.

Ok, leitor! Pode voltar e reler a primeira linha com calma. Eu espero.Porto-Seguro2

Viu? Você não entendeu errado. Embora eu concorde com você que Porto Seguro e trabalho soem como palavras impossíveis de ocuparem a mesma frase. Mas, foi exatamente o que aconteceu.

E uma viagem com um propósito incomum tem que ser diferente, não é?

Estados vizinhos, é de se supor que o trajeto da capital capixaba até Porto Seguro fosse uma reta, mas as companhias aéreas vivem desrespeitando essa regrinha de Geometria sobre a menor distância entre dois pontos e, para viajar de Vitória à cidade baiana, é preciso uma escala em Belo Horizonte com troca de aeronave.

Se viajar é preciso, viver é mesmo impreciso. Ao embarcarnos no avião, na capital mineira, para acessar meu lugar à janela, peço licença ao estrangeiro sentado na poltrona do corredor. Mal me acomodei, ele puxou papo. Descobri que era suíço e estava viajando há cerca de 20 horas.

Suíça-Porto Seguro, ou melhor,“Paradise!” — disse-me.Contou que estava com um amigo brasileiro sentado mais à frente no avião. “And you?” Bem, apesar de estar rumo ao paraíso, viajava a trabalho. Ele me olhou incrédulo.

Meu inglês ia além do “The book is on the table” então, não tive dúvidas de que o estranhamento se deu pela minha sorte (se é que pode-se chamar assim) e não porque não me entendera.

Normalmente, não perco a chance de conversar com alguém, ainda mais de uma cultura diferente. Mas, como precisava estudar minha apresentação, tirei as anotações da bolsa meio como dando por encerrado aquele papo. Ele ia ao paraíso a lazer; eu, a trabalho; e estamos conversados.

Antes de me entregar à leitura, dei uma olhada ao redor. De fato, eu destoava do grupo. Os demais só esquentariam a cabeça sob o Sol e a única preocupação seria com o fator do filtro solar. Eu necessitava queimar a mufa para turbinar meu Power Point a fim de não precisar contar com outro fator de proteção: a sorte.

Segui lendo minhas notas. Percebi que o turista me olhava seguidamente. Aquilo começou a me incomodar. Resolvi dar uma encarada daquele tipo “Perdeu o nariz aqui?” Mas, antes do meu movimento ele disse: “I can’t breathe.”

Hã? Não consegue respirar? Como assim? Ele confirmou. Não sentia dor alguma, mas afirmava que não podia respirar. Chamei a comissária. Nos comunicávamos em inglês, mas ele, nervoso, desandou a falar em suíço. Caramba! Como ajudar?

Os vizinhos de poltrona logo se interessaram pela cena. O amigo dele se aproximou, mas também não falava suíço. A comissária trouxe um balãozinho de oxigênio.Nisso, o avião inteiro já acompanhava o desenrolar da história.

Pelo autofalante, uma comissária buscou um médico a bordo. Nada. Mas, é bom explicar: não havia um médico diplomado, porque de médico e de louco estamos sempre bem servidos.No entanto, ninguém se apresentou.

Até que uma baixinha de calça branca, que parecia ter sido costurada no corpo, disse: “Deixa comigo.” Primeiro, “examinou” o paciente, como faz uma criança que se veste de médico e mostra a brincadeira para os pais. Depois, pareceu medir os batimentos dele.

Então, começou a empurrar o nariz e a cabeça do suíço para cima. Ele arregalava os olhos. Aquilo foi me dando agonia. Pelo rebolado, não conseguia imaginá-la andando pelos corredores de um hospital.“A senhora é médica?” — perguntei. “Praticamente” — respondeu.

Praticamente? Como é que alguém é praticamente médica? “Enfermeira?” — insisti.  “Pode se dizer que sim” — revidou. Eu e as comissárias nos entreolhamos preocupadas. A chefe delas, deixando de lado o sorriso profissional, correu para avisar ao comandante. Turbulência à vista.

O passageiro, ora ficava vermelho, ora branco. Percebi seu desconforto com o tratamento aplicado. A comissária também e pediu à passageira que retornasse ao seu lugar. Ela não gostou de lhe retirarem o paciente. Antes de sair de cena, rosnou algo. Não foi vulgar, mas praticamente soltou um palavrão a praticamente médica.

A comissária recolocou a máscara de oxigênio. Eu tentava confortá-lo. Então, ouvi o aviso do comandante, informando que, por questões de saúde de um passageiro, pousaríamos em Vitória. Não Vitória da Conquista, na Bahia, mas Vitória do Espírito Santo, de onde eu havia saído às 10 horas. Eram quase 4 da tarde.

Ou seja: viajara por centenas de saquinhos de batata frita, engolidos não sei quantos quilômetros e, após cinco horas, voltara ao mesmo lugar.Ufa! Será que eles têm balão de oxigênio reserva?

Em terra firme, a ambulância aguardava o passageiro doente. Fiquei feliz em ver, pela janelinha do avião, que meu outrora vizinho de poltrona havia tido uma melhora espantosa.Nem parecia ter passado tanto sufoco.Teria sido pânico?

Ou será que esse negócio era comigo? Talvez os orixás da Bahia não estivessem gostando nadinha dessa história de eu ir lá para trabalhar. Quem mora na cidade, tudo bem! É claro que há labor, mas, daí, alguém se despencar para a terra do Sol e águas tépidas e passar uns dias só trabalhando.

“Manda de volta!” — pode ter ordenado Oxalá.Será? O mal-estar do gringo teria sido um aviso? Se for, preciso de um sinal mais forte, não posso simplesmente pedir para sair.  Estava imersa nesses pensamentos edificantes quando a comissária determinou que todos desembarcassem.

Pronto! É o sinal! E agora? Se eu ao menos tivesse colocado um biquíni na mala, teria deixado a divindade na dúvida, mas laptop, salto alto e cabelo escovado… Mas como desistir da viagem? Pior, como explicar essa situação no Tribunal onde trabalho.

Certamente, os juízes condenariam minha atitude só com o olhar. E o que dizer ao presidente do Tribunal?

— Excelência, agradeço a confiança depositada. Eu teria muito orgulho em ter representado o Tribunal no evento, mas Oxalá não me quis na Bahia e…

— Quem?

— Oxalá, uma espécie de deus…

— Deus? Chama ele aqui agora, para gente esclarecer umas coisas.

Não! Ia ser um transtorno. Melhor aguentar firme, pedir ajuda aos santos. A todos os santos, e seguir para a Bahia. Obedeci à comissária, e recolhi meus “pertences trazidos a bordo”. Como os demais passageiros, esperava, em pé, a abertura de portas para sair do avião.

Foi quando ouvi um homem, lá pela fila 10, falar em tom de brincadeira: “Hum…  Acho que vamos ficar aqui umas duas horas.” A moça da fila 15 não entendeu a graça e, em tom grave, repassou o recado para os passageiros de trás. “Vamos ficar aqui no mínimo duas horas”.

Fiquei imaginando como esse telefone-sem-fio chegaria ao final do avião.

Passageiro da antepenúltima fila:

— Parece que vamos ficar aqui até às 2 horas.

Mulher da penúltima:

— Até às 2 da manhã?

Rapaz da última:

— Até as 2 de amanhã! E aflito, completaria:“Será que vai ter mais serviço de bordo?”

A alimentação foi um capítulo à parte. Por sorte, fora servido um pequeno lanche: batata frita, cookies de chocolate e balinhas de gelatina em formato de aviãozinho. Achei as balinhas uma poesia. Adorei ter aviões no céu da boca.

Quem inventou esse cardápio para alimentar meu lado infantil? Só faltou o sorvete. Não à toa, as crianças a bordo eram as únicas que não reclamavam. Nunca almoçaram tão bem e com o aval dos pais.

Desembarcamos em Vitória e, na Sala de Embarque, quem está ao meu lado? A praticamente médica. Não resisto.

— O que será que aquele suíço teve? Terá sido pânico?

— Ah! Menina! Você não viu o garotão que estava com ele? Isso é comum com quem toma aquele remedinho azul!

— O quê? — perguntou outra passageira interessada. E rapidamente o assunto caiu na boca do povo.

As rodinhas de conversa se animaram, e taxiei por algumas. Havia o grupo dos chatos: “Por causa desse tarado, estamos atrasados.” Outros, mais humanos. “Passar mal longe de casa é horrível.” E alguns faziam graça: “Ele queria tirar o atraso e atrasou todo mundo”.

Enfim, sentimentos de todos os tipos, mas o fato era que a versão de uma pessoa que tentou se passar pelo que não era, rapidamente, virara realidade.

Fiquei observando tudo e todos e comecei, caro leitor, a escrever essas linhas.Não dava mais para estudar apresentação alguma com uma crônica desenrolando-se à minha frente.

Para o evento, iria ter que contar mesmo com a ajuda dos orixás. Gosto tanto do mar e de me enfeitar que, quem sabe,até lá, Iemanjá não me adota? Felizmente, nos chamaram para embarcar e, por volta de seis da tarde, pousamos em Porto Seguro.

A apresentação correu bem e, para compensar os transtornos da viagem de ida, a volta foi perfeita. Os voos não atrasaram. Não houve suíço passando mal, nem fofocas e comentários infelizes.

No trajeto Porto Seguro-Belo Horizonte, minha companheira de poltrona foi uma pessoa alto astral. Uma mulher viajada e com uma visão bacana do mundo. Conversamos de trocar telefone e face.

No trecho Belo Horizonte-Vitória, estava sozinha.Tempo para continuar esse texto. Logo ao decolar, o comandante, bem humorado, fez uma brincadeira. “Em 50 minutos estaremos na bela cidade de Vitória. A capital do Espírito Santo é uma ilha. Valendo um chocolate. Além de Vitória, quais as duas capitais no Brasil que também são ilhas?”

Levantei o braço correndo. Yesss! Acho que era a única do voo que não faltara às aulas de Geografia.A comissária veio até meu lugar. Conferiu o acerto e me entregou o chocolate.Para você, leitor, que me acompanhou nessa viagem, o que mais preciso dizer para encerrar o texto?

As capitais? Florianópolis e São Luiz. Ah! Você já sabia. Então…Ora, ora, ora… Deixe de graça.

Não é isto! Quer saber se o chocolate era suíço?

Foto: Google Imagens
Martha Gonzalez escreve, quinzenalmente, aos domingos.

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