Powerful Woman

Assim mesmo, em inglês. Ela diz que, se traduzir, perde o efeito mágico. Presente da fada madrinha para a menina que cresceu ouvindo afirmações de que ela era desleixada, interesseira, piranha, preguiçosa, prostituta, puta, vagabunda e quaisquer outros termos denotativos para um ser errado e impuro. Ela era tudo, menos mulher.

Para Anna, nesta história, não há culpados nem coitadinhos. Há consequências da ignorância enraizada por séculos de gerações.

Pois bem, palavras também podem abusar, estuprar, violentar…

E foi assim que Anna percebeu a gravidade de ter nascido com vagina. Algo seriamente marcado por questões culturais, econômicas e sociais, dentre tantas outras.

Tudo nela era censurável. Os movimentos, as curvas do corpo, os questionamentos, os comentários e, claro!, o sexo feminino. Quando criança, não possuía vocabulário capaz de explicar situações, conotar expressões ou ordenar sentimentos. Ainda hoje, diz não saber descrever a sua biografia por meio das palavras. Confessa uma ironia, porque suas feridas foram abertas com palavras cortantes.

Ela tinha uns seis anos quando colocou o primeiro biquíni. Presente dos pais. “Era lindinho, nas cores azul, branco e rosa. Tinha a Margarida, do desenho Pato Donald.” E, também, a primeira lembrança das palavras “bandida, prostituta e puta”. Ela nem fazia ideia do significado, mas, pelo tipo de olhar e feições no rosto de quem a acusava, era possível perceber não serem boas. Sentiu nojo de si mesma, sem saber porquê.

Menstruou no colégio. Pelas aulas de Ciência, sabia alguma coisa do aparelho humano. Todavia, na prática, não conhecia nada. Em casa, quando perguntou o que estava acontecendo com ela, cometeu um grande ato estúpido, até então. Porque aquilo não era interrogação e nem conversa para se ter enquanto “moça direita”.

Ela não tinha modos. Era sem vergonha. Estava invadida. Perante aquela que a julgava, e diante da ignorância da própria mãe, sentiu brotar dentro de si revolta, dor e muita raiva.

— Veja como ela é! Eu já lhe disse, essa daí está perdida. É uma bandida. Isso não vai dar em nada. Olha só o jeito dela. Se fosse minha filha, metia a mão na cara dela — assim era a profecia.

Pelos livros, sabia que deveria usar absorvente. Entretanto, tinha que colocar um plástico na calcinha e dobrar um pano para receber o sangue que escorria pelas pernas. Aquele monte de pano úmido, sujo, fedia nos dias de calor.

Passou a usar absorvente porque o pai sentiu vergonha de todos verem a filha dele como se ela tinha feito as necessidades fisiológicas na calcinha e andava com as fezes endurecidas como em fraldas. No colégio não era permitido usar saia, apenas bermuda.

Era contraditório ouvir da própria mãe que ela deveria buscar um novo caminho. Era difícil compreender aquelas palavras em meio a severas discussões. Mais tarde, decifraria que as brigas da mãe eram distúrbios recheados por frustrações. A mãe tinha na filha o espelho refletindo a própria história. Por ser uma figura materna, era inadmissível consentir o intolerável como aceitável. Confuso.

Ainda assim, era garota caseira. Quieta, vivia na dela. Refugiava-se nos livros permitidos para leitura. Questionava-se tanto para saber o que havia de errado com ela. Mas não encontrava respostas, muito menos alguém para conversar. Sentia-se diferente das outras garotas, sentimento prolongado até os dias de hoje.

Diante das adversidades econômicas, mentais e sociais da própria família, a escuridão da vida se manifestava intensamente no bloqueio do pai e no orgulho ferido da mãe. Anna matutava estratégias para tomar um caminho iluminado. Quase perdeu o rumo quando se deu conta de não pertencer àquele lugar.

Tentou suicídio. Foi quando levou alguns tapas desesperados da mãe, na tentativa de trazê-la de volta à vida. A garota apagou por horas. Foi infeliz até na escolha para morrer. Diz que poderia ter sido um pouco mais inteligente, desejava ter nascido morta. Decidiu sair daquela situação. Seria diferente dos demais.

Assim, quis ser apática ao “mundo” feminino. Queria cortar os seios, tornar-se assexuada. Queria deixar de viver. Sim, era uma adolescente, gostava de meninos, mas já sabia que qualquer escolha era errada. Beijou, às escondidas, no mesmo período em que as páginas ou figuras consideradas indecentes eram rasgadas dos livros ou revistas.

Ainda que, muito antes, já não fosse nada mais do que uma puta, seu hímen foi arrebentado somente quando já tinha duas décadas de vida. Ela se odiou. Não contou a ninguém. Até porque, “já não era nada”. Portanto, não iria se dar ao trabalho por explicações que seriam incoerentes para uma verdade já prenunciada. Sentiu-se culpada e suja por muito tempo.

Cresceu odiando-se, sentindo raiva de tudo o que era. Incapaz de terminar qualquer coisa que começava, toda vez que sua condição intelectual ameaçava aparecer, fugia com medo de represálias. Vivia com fantasmas e vozes perturbadores. Não era ninguém.

Mas, ao mesmo tempo, era alguém que queria fugir para longe, não sabia para onde. Com a desculpa de estudar e trabalhar, dançando entre os atos contraditórios dos próprios pais, recebeu apoio para sair de casa.

Logo, era considerada mal-agradecida e orgulhosa. Dessa forma, seria uma bandida que recusara a própria família. Uma sem vergonha à procura de homens brancos e amigos ricos. E, claro!, se ela se desse bem na vida, nem iria olhar mais para a família pobre e preta.

Quaisquer escolhas eram erradas. Era difícil compreender quando ouvia: “Estude! Esta é a única forma de mudar de vida.” Mas, se estudasse, e se desse bem na vida, seria uma ingrata. Como assim?

Ao longo dos anos, diz que criou personagens para serem apresentadas ao externo. Uma forma de defesa como escudo de sobrevivência. Ela era um erro de qualquer forma.

Anna cresceu lutando para provar o que não era. Quando se tornou mulher — com M maiúsculo — e não precisava provar mais nada, nem lutar contra o que ela não era, não sabia mais quem era. Havia um vazio no seu próprio ser. Anna sabia quem ela não era, mas não compreendia quem ela poderia ser.

Ficou perdida. Tinha assimilado personagens para ganhar e desempenhar um papel na sociedade. Mas, no seu íntimo, ainda via a garota gerada pelas palavras. Em silêncio, travou uma briga interna muito cruel.

Em um mergulho profundo, foi buscar o remédio para sarar as feridas ainda abertas. Com o sal, os vermes começaram a rastejar para fora de cada buraco podre. O sangue jorrou com força. Sentiu-se mais leve. Ainda faz curativos.

Nas profundezas daquele oceano — lugar onde ela encontra, no paradoxo da adrenalina, a paz —, buscou entender o passado. Nadando por entre rochas, recifes e corais, encontrou pistas para compreender anos de repressão com gerações destruídas por inferioridade, ódio e opressão. Por toda parte, marcas de mulheres criadas para serem odiadas e proibidas de buscarem novos cursos d’água.

Durante anos, sentiu-se na obrigação de pagar tudo e oferecer até o que não tinha para mencionar o quanto era agradecida. Sentia culpa por ter quando o outro não tinha.

Em um conflito, aparentemente ilógico, foi a mesma tia materna, aquela que a apunhalava como “prostituta”, quem lhe deu a primeira máquina de escrever. Era confuso pensar em como alguém poderia oferecer um instrumento para prosperar sonhos e, ao mesmo tempo, sentenciar: “Você não vai ser ninguém na vida.”

Quando essa tia morreu, nenhum familiar quis pagar o funeral. A sobrinha, prevendo aliviar o peso da dívida da máquina de escrever e uma mensalidade escolar que tinham sido ofertados pela tia, arcou com as despesas. Da última vez que a viu, esta ainda permanecia em contradições, desejando o bem e profetizando o mal ao mesmo tempo.

Tempos depois, compreendeu que aquela mulher foi privada de ter a própria vida para cuidar da mãe. Foi proibida de estudar. Escolas desviavam o caráter de uma boa dona de casa, sentenciavam os anciãos. Era frustrada.

Quando a mãe faleceu, foi acolhida na casa da irmã mais velha. Moça acanhada, seu único amor foi um rapaz que viu uma vez em um ônibus. Paixão platônica que durou até os seus últimos dias. Morreu sem provar um beijo: angustiada, infeliz, solteira, virgem.

Quando Anna entendeu o quão triste foi a vida da tia, buscou perdoar a todos, inclusive a si mesma. Tarefa difícil. Até os intermináveis pedidos de desculpa da mãe causam dor. Embora tente oferecer amor aos pais, e estes a ela, precisa amar, primeiramente, a si mesma.

Neste processo de amadurecimento, amor e perdão, as palavras se tornaram antídoto para a própria cura.

De fato, determinadas palavras podem ser aceitas, caso pronunciadas em outro contexto. Quando articuladas, podem cair no vácuo ou flutuarem como balões difíceis de serem alcançados. Se captadas, são digeridas e processadas para então serem compreendidas em quaisquer outros idiomas.

No caminho da descoberta do seu próprio eu, “Powerful Woman” foram pronunciadas repetidas vezes por mulheres e homens de outros lugares. Anna demorou ouvir e perceber o que queriam dizer. Para Anna, essas palavras não faziam sentido. Recusando o que lhe diziam, desviava o corpo, a mente e a alma.

Todavia, dizem que as palavras ganham força toda vez que tentamos fugir delas. E foi o que aconteceu com Anna. Até que consentiu, e então as letras a tomaram pela mão para uma longa jornada que acabou de começar. Foi assim que a conheci. Moça miúda, de mãos delicadas, brilho nos olhos e gestos refinados pelo crivo da vida.

Apesar do medo e insegurança latejantes, Anna é uma mulher poderosa porque, simplesmente, aceitou a própria vulnerabilidade em se descobrir fêmea. Ela observa, escuta e compreende pelo outro a sua própria história. Encontra no seu passado o melhor aliado para uma base firme enquanto ser humano.

Uma mulher que passou a ser grata pelo que suportou sem precisar culpar ninguém por suas frustrações e infelicidades. Neste caminho de busca por um propósito de vida, Anna acumula força para inspirar outras mulheres.

Ela está presente em cada história que narra porque se enxerga em cada mulher que encontra pelo mundo afora. Independentemente de cor, cultura, idioma, país ou religião, ao se interrogar o que é ser mulher, expõe conceitos diversos. Ela está presente em todos eles.

Hoje, quando viaja para diferentes lugares e é considerada exemplo de “pessoa culta” e “moça instruída”, influencia, por meio de simples gestos e atitudes, o despertar de outras mulheres. É um reconhecimento mútuo.

A possibilidade de se questionar continua abrindo portas para o seu verdadeiro eu, para a descoberta de uma autêntica mulher. Anna ainda busca decifrar as amarras sociais presentes em cada jornada.

Pois bem! Neste emaranhado da vida, ser mulher é desatar cada nó que impede o sexo feminino de ser livre para manifestar o próprio poder enquanto ser humano. Cada mulher tem competência para fazer escolhas e oferecer a compaixão para que outras sintam-se livres para manifestarem o que desejam ser.

Ainda que você não esteja de acordo com a opinião ou atitudes de muitas delas, dê o direito aos seres com vaginas exprimirem aquilo que são. Uma simples prática de respeito e conhecimento ao outro e a si próprio.

Talvez, ser mulher tenha a ver com esse poder incrível de superarmos qualquer obstáculo com a graciosidade na sutileza de um lindo sorriso, por vezes, acentuado apenas por um leve batom nos lábios.

Março de 2017

 

Foto da autora

Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.

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