Pré-concebida 

As portas se abriram e o casal chamou a atenção dos clientes. Ela se destacava como uma rainha, numa elegância e bom gosto fenomenais. A posição do chapéu deixava em mistério quem era aquela mulher. Estávamos em um pequeno restaurante chinês no coração de Amsterdam, no murmurinho do “Distrito da Luz Vermelha”.

O estabelecimento bem cheio, na maioria turistas, restava apenas uma mesa grande e redonda, já ocupada por algumas pessoas. A cena que vi me impressionou. As duas mulheres presentes se recusaram sentar ao lado daquele casal de cor escura. Amsterdam é conhecida pela diversidade cultural e social, mas, ainda assim é possível este tipo de comportamento.

Aquela negra estava tão plena de luz que, aparentemente, não se incomodou com a situação. A garçonete chinesa tomou duas cadeiras vazias para dividir os espaços. Ainda assim, o casal permaneceu na mesa. A postura dos mesmos me deixava ainda mais maravilhada. Estava de perto a observar.

A mulher era linda. Uma beleza um tanto rara. As linhas traçadas pelo rosto, a posição dos olhos, a boca e o nariz mostravam um combinado mágico. Ela me representava uma deusa, uma espécie de divindade. As mãos delicadas revelavam uma pele acetinada. Era estranho e encantador observar aquele ser.

Pelo que conversavam, percebi que falavam em francês. Ainda que diante de tantos olhares de desaprovação por outros “brancos”, aqueles “negros” mostravam-se como rainha e rei. Deixavam a entender que não se importavam com o que estava à volta. Fizeram o pedido e a completa refeição. Nos esbarramos na saída e a moça me soltou um sorriso com olhar cheio de autoestima.

Naquela semana, fui visitar minha família no meu País de origem. Tinha saído de um Centro Médico acompanhando meu irmão. Passava das 21 horas e a Polícia fazia a ronda noturna. Estávamos em três pessoas no ponto de ônibus. Duas mulheres em pé e aquele homem de cor mais escura que a minha, sentado no banco de espera.

A viatura diminuiu a velocidade, fez o retorno no hospital. Os policiais colocaram os fuzis para fora da janela do carro em um gesto intimidador. Quando se aproximavam, vi nos gestos daqueles homens estúpidos, e nos olhos do meu irmão, a realidade escancarada diariamente nos jornais.

Antes daquele automóvel parar, perceberam que estávamos conversando. Fizeram um barulho, desses de carro de Polícia, e seguiram.

Outro dia, fomos a uma joalheria. Enquanto meu irmão terminava de fumar o cigarro, entrei para observar alguns relógios na vitrine interna. Em seguida, meu irmão foi questionado pelo segurança da loja. Este só o deixou entrar quando a atendente fez sinal avisando que nós estávamos juntos.

Em uma viagem aqui mesmo dentro da chamada União Europeia, logo no desembarque, as pessoas de cor eram questionadas a apresentarem o passaporte diante um controle interno do aeroporto. Um policial veio ao meu encontro fazendo sinal de espera. Mas, quando viu o homem alto e loiro se aproximando ao meu lado, e conversando comigo, apenas perguntou:

–– Vocês estão juntos?

–– Sim.

–– Então, podem seguir.

Claro que senti na pele o valor da ideia pré-concebida. A começar pela união do espermatozoide do meu pai branco e do óvulo da minha mãe negra. Ou pelos constantes conflitos familiares entre homem e mulher, preto e branco, rico e pobre, hetero e homo, independência e liberdade, público e privado, classe social e…

Diante dessas histórias banais e cotidianas, até quando vamos seguir com esses juízos pré-conceituados em atitudes discriminatórias?

A misteriosa deusa que vi no restaurante chinês pulsa em minha mente quando presencio qualquer situação de pré-conceito. Não sei quem ela é. Entretanto, acredito que quis me mostrar que as transformações simbólicas, em diferentes culturas e religiões, devem partir de nós mesmos, ainda que seja uma constante luta diária de imposição de ideias e respeito.

Outubro 2015
Foto: Edsandra Carneiro
• Edsandra Carneiro escreve às terças-feiras

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