Salva de novo

Três dias antes, a terapeuta disse com a voz suave e direta, procurando as melhores palavras para se expressar no inglês:

— Precisamos fazer um acordo para continuar o seu tratamento. Você vai me prometer que não vai tentar nenhum ato de violência contra si mesma nos próximos dias. Aceite que você está doente e vai se curar.

Minha última crise tinha sido pavorosa e estava certa de ir parar em um hospício. Os surtos alternavam estranhamente e os momentos de pânico tornaram-se constantes. Mas, pouco a pouco, sentia-me consciente de que gostaria de continuar vivendo.

Era dia de Sol e Amsterdam estava linda. Corri à livraria, comprei um livro e me atrevi a escrever a dedicatória em holandês. Era aniversário de uma colega e gostaríamos de estar com a família e os amigos dela. No carro, o parceiro fazia os planos da viagem para a Itália e eu pensava se o carro teria condições de transportar a nossa quase espécie de mudança.

Em Haarlemmermeer, no caminho perto do Aeroporto Schiphol, um sinal avisava que duas das pistas da esquerda estavam fechadas e os carros deveriam reduzir a velocidade. Ainda sob a tensão de estar em rodovias, herança do primeiro acidente, pisei no freio mentalmente e fisicamente com o movimento voluntário dos pés… Não estava no volante e não faço ideia de quando serei capaz de dirigir. Um medo constante, um paradoxo com aquelas ideias de suicídio.

Ainda em movimento, sequer tivemos tempo de parar ou desviar. A imprudência do automóvel que vinha atrás fez, em uma fração de milésimos de segundos, um estrago aclamado de um estrondo ensurdecedor.

A condutora distraída não freou e nos acertou em cheio. A batida foi tão violenta que os nossos corpos foram lançados contra o painel do carro. O cinto de segurança nos manteve presos ao assento, impedindo uma tragédia maior. O livro foi arremessado para fora das minhas mãos. Ficamos entre os dois carros em uma espécie de engavetamento. O automóvel foi totalmente destruído.

Saindo dos detalhes do acidente, o que me chamou a atenção é que algo neste Universo me sugeriu condições paradoxais de comportamento. Talvez o fato de ter visto a morte de perto mais uma vez, e desta vez sair ilesa (apenas dores musculares e na cabeça) seja o momento de enxergar possibilidades e curar as feridas do passado ainda abertas.

Assim que saímos do carro, a condutora do veículo da frente já estava diante de nós para nos prestar socorro, enquanto a que provocou o acidente caminhava em nossa direção oferecendo apoio e pedindo desculpas ao mesmo tempo. Todos os quatros passageiros estavam em choque. Todos tremiam e estavam completamente atordoados.

Quando nos demos conta, uma ambulância já tinha feito a barreira de proteção e o socorro nos oferecia atenção. Tudo muito rápido. Enquanto isso, a Polícia chegava e nos perguntava se estávamos bem. Um modo prestativo que, um dia, já havia presenciado de perto. Fiquei surpreendida pelo gesto de solidariedade em conjunto, com um tentando acalmar o outro.

Aos poucos, as questões técnicas começaram ser tratadas. Tentavam, de modo gentil, nos relaxar e descontrair o ambiente do susto. A educação das pessoas me fez acreditar que ainda é possível viver em condições de paz. E me lembrou a solidariedade do jovem Fabrício, que, há quase quatro anos, me manteve lúcida, à espera do socorro e salvou meus pertences enquanto um bando saqueava um lugar manchado de sangue.

Obviamente, não quero e nem posso fazer comparações entre pessoas e lugares. Mas o medo, o pavor, o desespero, a angústia, a tristeza, a solidão e a depressão que foram instalados em mim nos últimos anos em decorrência de diversos fatores, talvez, de alguma forma, tenham ficado naquele asfalto misturados aos cacos dos automóveis deste acidente.

Neste verão, vamos para a Itália de avião, como costumamos fazer. As visitas aos países vizinhos ficarão para um futuro próximo. O livro vai ganhar um novo embrulho e o presente será entregue em breve. Sigo em observação e tratamento por algum tempo. Desejo curar as dores e fechar as feridas. Quero aprender viver bem com as cicatrizes.

Acredito que ainda tenho um caminho longo a percorrer. A vida segue.

Junho 2014

Foto: Edsandra Carneiro

• Edsandra Carneiro escreve às terças-feiras

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