Supertramp

Viajar é conhecer novas pessoas, inclusive outras que nos habitam. A  turnê, no Brasil, do vocalista da banda Supertramp, Roger Hodgson, me transportou para Portugal, onde me surpreendi com a fã adormecida dentro de mim.

A histeria… Digo, a história começou dentro do avião. A revista de bordo anunciava o show da banda na cidade do Porto, exatamente no dia seguinte à nossa chegada. Aquilo chamou minha atenção. Afinal, desde a juventude, adoro suas canções.

When I was young, it seemed that life was so wonderful. A miracle, oh it was beautiful, magical. (Perdão pela minha tradução: “Quando eu era jovem, parecia que a vida era tão maravilhosa, um milagre. Oh! Era tão bonita, mágica.”)

Mal nos acomodamos no hotel e fomos, eu e Januza, atrás de uma loja Fnac comprar os ingressos. “Acabou há mais de um mês” — informou o atendente, como quem diz “Por que acham que conseguiriam comprar ingressos um dia antes do show?” Certamente, pensou: “Como são burras essas brasileiras, o pá!”

Fiquei desolada. Januza até gostava do som deles, mas eu… Bem, adorava! Aliás: a-d-o-r-o! Sabia várias letras de cor. Vale dizer, de coração.  Perder uma oportunidade dessas! Oh! No! Quase não me reconhecendo, perguntei à amiga: “Será que aqui tem cambista?” Ela me olhou, espantada. “Estamos na Europa, e você sempre foi contra essas coisas”.

Pois é! Voltamos ao hotel e, à noite, sonhei com o Supertramp: Dreamer, you know you are a dreamer. (Gente, perdão, de novo: Sonhador, você sabe que é um sonhador.) Dia seguinte, refeitas da viagem, pernas para que te quero. Anoitecia quando, após beber um sumo e comer um sandes, avistei uma placa indicando a direção do estádio onde a banda se apresentaria. Estávamos bem próximo.

A cidade do Porto é uma das maiores do país. Flanamos o dia inteiro. Isso não pode ser apenas coincidência, pensei. Os deuses da música estão conspirando a favor. Convenci Januza a ir até lá, dar uma espiadinha.

No portão de entrada, ficamos observando o movimento. Não vi cambista. Fui até a bilheteria, enquanto Januza pesquisava o local. Pisando em ovos, perguntei à rapariga se havia alguma desistência, com devolução de ingressos, uma venda especial ou algo similar.

Ela me apontou um senhor que “parecia” estar com ingressos sobrando. Pisando nas nuvens, fui atrás do portuga. Ele me olhou desconfiado. Contou ser professor e ter comprado 20 ingressos para seus alunos e todos desistiram na última hora. Por isso, os vendia.

Ora, pois, pois. O gajo está a querer que eu acredite que um professor tem salário para comprar tantos ingressos?  Pois, acredito! Ou quer que o admire por sua generosidade com os alunos? Pois, encantei-me!

Será que este Joaquim está a fazer-me de Mané ao cobrar um preço superior ao da bilheteria e afirmar ser apenas um professor? Formidável esse mestre! Sou até capaz de apostar que leciona Ética na Universidade de Coimbra.

Podia, enfim, engolir qualquer cantiga não fosse um detalhe: para uma fã, é inverossímil alguém ter entradas e não ir a um show do Supertramp. Então, esse professorzinho não precisava gastar seu latim. Melhor: seu português enrolado com historiazinhas ou lições de moral.

Ele era, em bom português do Brasil, um cambista. Eu também não estava no melhor papel da minha vida. Assim, iríamos negociar sua ganância com a minha vontade e ponto. Januza olhava minha movimentação de longe, não conseguindo segurar o riso.

Aqui, devo abrir um parêntese: a musicalidade dos sotaques me encanta. Bastou colocar os pés na Terrinha e comecei a imitar o modo português de falar. O melhor — ou seria pior? — é que o faço bem.

Aí, para não parecer uma turista do outro lado do oceano e ser explorada com a mesma amplitude geográfica, negociava na língua dele. Tentava passar por uma nativa, acreditando que a facada seria menor. E não fiz tão feio. O gajo chegou a me perguntar de que cidade de Portugal eu era. “Do interior, claro!” — devolvi secamente. E mudei de assunto.

Explicado o riso da amiga, fecho o parêntese. Bem, o lugar mais barato fora vendido, na bilheteira, por 40 euros. De início, o amado mestre pediu 100, mas rapidamente baixou para 80. Fui acertar com a Januza. Ela pagaria, no máximo, 50.

Também não gosto de ser explorada, mas o coração, na boca, cantava: quando teria outra oportunidade de assistir ao Supertramp? Voltei ao gajo e recomeçamos a negociação. O fato de Januza ficar distante virou uma tática. Ganhava tempo e, como ela “não estava tão a fim”, isso talvez ajudasse a abaixar os valores.

Eu tinha consciência de que não conseguia esconder meu entusiasmo. Duro na queda, ele afirmou que, por menos de 65 euros, não tinha negócio.  Afastei-me, dizendo ir consultá-la. Eu, normalmente ansiosa, passional, resolvi, friamente, usar o tempo a nosso favor.

Afinal, quanto mais perto da hora do show, mais frágil o cambista ficava e mais forte nos tornávamos. Ficamos à espreita. Ela, tranquila; eu, numa gangorra de emoções. Cheguei a pensar em pagar o que ele pedia e assistir ao show sozinha. Nossa amizade não tem melindres. Viajar junto não é sinônimo de ter que fazer as mesmas coisas o tempo todo.

Mas fiquei receosa em voltar só. A que horas ia acabar esse show? E se atrasasse muito? O metrô ainda estaria funcionando? Não havia nenhuma estação perto. Aliás, não sabia nem qual a linha para o hotel. Será que táxi no Porto pega-se na rua ou tem que ir até o ponto? Esse bairro é perigoso?

Na Europa, também há assaltos, crimes. Há até cambistas, veja você! Goodbye stranger it’s been nice. Hope you find your Paradise. (Adeus, estrangeiro. Foi muito agradável.)

Abandonei a ideia de ver o show só. Em dupla tudo fica mais fácil. Mais próximo ao horário do show, ofereço 100 pelos dois bilhetes e seja o que Deus quiser.

Mesmo decidida, toda vez que alguém abordava o professor, meu coração saia do ritmo. Sabia, no íntimo, que, se as entradas acabassem, eu demoraria a me perdoar. Ia mesmo precisar take the long way home. (Pegar o caminho mais longo de volta para casa.)

O tempo avançou. Fui ao seu encontro e fiz minha oferta. Ele aceitou e me entregou uma folha com uns números impressos. Hã? Bastava trocá-los na bilheteria, disse-me. Aí, tremi. Tinha visto pessoas fazendo isso, mas não conhecia o teor do documento. E se esse papel fosse falso?

Retruquei que só pagaria após fazer a troca, com os ingressos em mão. Ele se irritou e mais blá-blá-blá. Eu devia ser menos desconfiada, falou. Meu argumento final foi que as coisas podiam ser assim na cidade grande, mas, no interior de Portugal — de onde eu vinha, claro! — era diferente. (Olha até onde a personagem portuguesinha-do-interior- estava me levando! Sentia o buço começando a crescer.)

Deu certo. Reclamando muito, foi conosco até a bilheteria. Ingressos na mão, entramos, felizes. A bateria da máquina fotográfica, ao contrário da nossa, estava esgotada. Mas o show ficou gravado em nossos corações. O do palco e o nosso, na arquibancada. Em uma das melhores músicas, nos pegamos cantando alto e rindo uma para a outra, cúmplices de sermos personagens de uma história com final feliz.

Como é bom viajar! Como é maravilhoso conhecermos outros lugares dentro de nós mesmas. Espero que você encontre o Paraíso.

Primavera, 2014

Foto: Google Imagem

Martha Gonzalez escreve, quinzenalmente, aos domingos

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