Todo mundo acredita em elogio

Unhas feitas, saiu do salão apressada. Um telefonema do consultório, pedindo a confirmação do eletroencefalograma, a fez lembrar o compromisso e deixar a vaidade pela metade. Sorte a atendente ter ligado antes do cabelereiro começar a escova, pensou. Quando o secador solta a voz, ninguém escuta mais nada.

Como podia ter esquecido o exame médico? Onde andava com a cabeça? Em um salão de beleza quando deveria estar deitada em uma maca na sala de exames! Lembrou-se da mãe acostumada a dizer “Não tem nada nessa cabecinha, hein!” E completou para si mesma: “Assim espero.”

Chegou na hora marcada. A sala lotada a fez pensar por que horários de consultas e exames só valem para os pacientes. Médicos contam o tempo de uma maneira não-paralela à dos demais mortais. Eles não se encontram nem no infinito. Daria para ter escovado o cabelo, concluiu. Aliás, poderia ter feito até uma massagem antes.

Chamaram seu nome. À medida que a enfermeira colocava os eletrodos, agradecia ter economizado no salão. Que massinha gosmenta é essa que eles usam para grudar essas plaquinhas na cabeça da gente, se perguntou. O cabelo vai ficar um lixo e ainda tenho uma reunião no trabalho.

O exame foi rápido e ficou surpresa quando a enfermeira informou que o médico responsável poderia atendê-la de imediato. Assim não precisaria retornar depois.

— Muito bem, Cecília! Seus exames estão ótimos. Não há nada na sua cabeça.

— É! Minha mãe vive me chamando de cabeça de vento — brincou, aliviada com o resultado.

— Uma mulher tão bonita não precisa mesmo de mais nada — acrescentou o doutor, sorrindo para ela.

Cecília retribuiu com um sorriso amarelo enquanto falava para seus botões. “Esse cara acredita ter feito um elogio, mas, na verdade, só está demonstrando o quanto é ogro. Melhor fazer a egípcia e ir embora. Ainda tenho que ajeitar o cabelo antes de ir trabalhar.” Ato contínuo, passou as mãos pela cabeleira.

— Não! Não mexa em seu cabelo — alertou o médico.

— Como?

— Você está linda com esse penteado meio… bagunçado. O exame acabou libertando seus fios. Vocês mulheres têm mania de estarem sempre bem escovadas, cada fio em seu lugar. Se soubessem como os homens acham bonitas as madeixas soltas, descompromissadas. Cabelos livres são muito sensuais. Em você, ficaram mais que perfeitos.

— Bem, doutor, se suas pacientes seguirem seus conselhos, os cabelereiros vão morrer de fome, hein? Obrigada e até logo.

— Uma mulher, para ficar bonita, Cecília, só precisa acreditar que é bela. Siga meu conselho: dispense o cabelereiro. Pode ter certeza: você está irresistível com o cabelo desse jeito.

“Mais essa agora”, pensou levantando-se da cadeira. Um médico visagista. Despediu-se ainda na dúvida se recebera uma cantada ou o doutor era mesmo um louco travestido de médico. Saiu rapidamente. Tal qual o coelho da Alice, tinha pressa. Precisava arrumar a juba antes de chegar ao trabalho.

Ao entrar no elevador, no entanto, ficou frustrada pela falta de espelho. Vaidosa, queria conferir o visual. Sorriu ao lembrar as palavras do médico. “Que papo! Então, tá! Quando a porta desse elevador se abrir, não tem para ninguém. Se cuida, Gisele!” — brincou, chegando ao térreo.

Ao sair do prédio, notou que o porteiro cutucou o colega ao lado e os dois a olharam com interesse. Conforme caminhava pela rua, percebia o olhar mais demorado dos representantes da ala masculina. Desconfiada, começou a inventar testes.

“Aquele cara acompanhado da loura boazuda com calça de lycra branca: se ele me encarar…” E o rapaz não só a fitou como sorriu. “Gente! O que está acontecendo? Esse cabelo bagunçado… Será que estou tão atraente assim?”

Parou em uma banca de jornais e, além do jornaleiro ser todo sorrisos, alguns rapazes a observaram demoradamente. Já acreditando nas palavras do médico, olhou as capas das revistas de celebridades e desdenhou: “Quanto Photoshop. Não tem nada natural aí.”

“O que é isso, Cecília?” — censurou a si mesma. “Já está convencida de que é irresistível?” Apressou o passo para o trabalho, mas, no caminho, mantinha a busca por um espelho, uma vitrine, qualquer vidro em que pudesse ver seu reflexo. Nada.

— Claro! — disse alto, batendo a mão na testa. “Deve ter alguma coisa errada comigo.” Começou o autoexame pelos pés e foi subindo. Sapatos, saia fechada, blusa abotoada, nada manchado ou rasgado. A bolsa combina. Levou as mãos as orelhas. Sim, os brincos formavam um par. Já saíra com brincos diferentes. Só não ousou colocar as mãos nos cabelos para não desmanchar o despenteado.

Parecia tudo ok. De qualquer sorte, cogitou entrar numa loja, pegar uma peça de roupa só para ter acesso a uma cabine com espelho quando um prédio todo em vidro fumê apareceu como salvação. Parou em frente às vidraças e viu a si mesma. Não encontrou nada de errado. O cabelo pareceu bem ajeitado, meio leoa, mas bonito.

“Então, o médico está certo! Bastou trocar o penteado ou, no meu caso o não-penteado, e a mágica se fez? Esse jeito de usar o cabelo me torna especial? Como ele disse mesmo? Ah! Irresistível!”

Estava tonta com sua descoberta. Quanto dinheiro jogado fora em salão! Engraçado: no íntimo, intuía essa verdade. Não raro, discutia com a irmã sobre as matérias bobas das revistas femininas e a ditadura da moda. Uma hora, cabelo liso; na estação seguinte, encaracolado; e por aí vai. E as escovas? De chocolate, de caviar, inteligente? Oi? Inteligente era quem não se rendia a essa manipulação.

— É a indústria da insatisfação — costumava dizer para a mana mais nova. E prosseguia: “Você nunca será magra o suficiente, linda o suficiente, inteligente o suficiente, boa de cama o suficiente… Enfim, você nunca será mulher suficiente. Sempre em débito e frustrada, gastará todo o seu dinheiro consumindo essa bobagem e os produtos vendidos por eles.

Mas, verdade seja dita, mesmo com momentos de lucidez, acabara de se dar conta de que foi preciso o diagnóstico de um médico para abrir os olhos. Bem, agora, sabia: as coisas podiam ser mais fáceis. Abaixo a formatação única de rostos e corpos. Fora a beleza como produto de farmácia.

O que fazer com essa informação escancarada em seu rosto? Virar palestrante? “Descubra-se e fique linda!” daria um bom slogan. Poderia também arrematar a seção completa de livros de autoajuda para se tornar ainda mais incrível? Ou, quem sabe, escrever um livro definitivo sobre o assunto e ganhar muito dinheiro?

Seria interessante cada mulher perceber não precisar respeitar a fórmula do momento para ser bela. Num gesto simbólico, jogou a escova fora e resolveu que, em primeiro lugar, iria mesmo descobrir o endereço do Reynaldo Gianecchini. Depois pensaria no resto. Como garantia, no dia em que fosso sair com o Giane, marcaria outro eletro.

Salão, nunca mais! Enquanto traçava esses planos, o celular tocou. Era do consultório. A atendente informou que ela esquecera uma sacola. Cecília agradeceu e perguntou se o médico ainda estava lá e podia recebê-la. “Ele é ma-ra-vi-lho-so” — disse para a secretária, num rompante.

Por mais esquisito ou antiético que ele pudesse ter sido, ela reconhecia que devia essa ao doutor-maluco. Queria agradecer-lhe pessoalmente. A atendente sorriu e Cecília escutou quando a moça, incluindo o elogio feito, deu o recado ao médico, que parecia estar ao lado. Cecília também ouviu-o dizer “Estou esperando ela de braços abertos.”

Quase se arrependeu do comentário. Esse médico podia entender tudo errado, mas, feliz com sua descoberta, tirou por menos. Acertaria qualquer mal-entendido quando estivessem cara a cara. A dela, no caso, uma linda cara. Voltou correndo ao consultório.

Ao entrar na sala de espera, a atendente, sorrindo, lhe entregou a sacola e foi logo informando, com um sorriso malicioso: “Depois da senhora, não tem mais ninguém. Ele cancelou as outras consultas. Mas, antes de entrar, permita-me passar um lenço em seu rosto. Provavelmente, a enfermeira, depois de retirar os eletrodos do exame, esqueceu de limpar essas massinhas. Esse material é experimental. Acho que não vai vingar, mancha muito. A senhora está com a testa toda pintadinha de azul. Saiu tão corrida daqui que não pude nem avisar. Pronto, agora sim. Pode entrar.”

Ainda juntando lé com cré, foi entendendo o porquê de ter virado alvo de tantos olhares. E, como tudo que é ruim pode piorar, deu-se conta que ainda tinha de desfazer um mal-entendido com um ogro. Dessa vez, Cecília não precisava de nenhum espelho para saber que, naquele momento, estava de cabelo em pé.

Martha Aurélia Gonzalez escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras

Imagem: pintura de William Waterhouse

(Primavera,2014)