Uma cidade, uma rua, uma casa…

Gosto andar pelas ruas da cidade onde moro com olhos de turista. E de comportar-me como moradora nos lugares que visito, tentando mostrar certa intimidade com as ruas, calçadas, pessoas, casas… Ando de ônibus, a pé, tentando disfarçar o jeito curioso de observar tudo e todos. Para meu “fingimento” se tornar mais “real”, evito até carregar máquina fotográfica.

Aliás, viajar sem máquina tem me proporcionado uma incrível sensação de liberdade! E foi justamente num desses dias, sem câmera, esperando ônibus num ponto da Rua Augusta, tentando parecer uma típica habitante de São Paulo, que deparei com uma daquelas imagens que mais parecem fotografia, ou pintura.

O ônibus demorou e tive tempo para apreciar aquela cena cinematográfica: em frente a uma casa centenária, e em péssimo estado de conservação, sentada numa cadeira, olhos fechados, a cabeça levemente caída para o lado, coberta por um fino cabelo branco, estava uma velhinha (seria a dona da casa?).

Por um instante, pensei que estivesse morta (e o filme seria de terror). Olhando mais atentamente, vi, no colo da senhora, uma mancha negra. Era um gato, um enorme e lindo gato preto, dormindo confortavelmente nos braços de sua protetora. Então, deduzi: está viva, está dormindo!

Gostaria de ter registrado aquela imagem, mas, na falta de máquina, tentei ao máximo fixar o instante na lente dos meus olhos: todos os detalhes, a textura do cabelo, o estampado do vestido com jeito de “roupa de andar em casa”, o pelo macio e farto do gato preto.

Um homem se aproximou. Era o caseiro. Aproveitei para fazer-lhe umas perguntas. Ah! Esqueci de dizer que não sou fotógrafa. Sou jornalista, e, por isso, adoro perguntar. Nos poucos minutos antes de o transporte chegar, fiquei sabendo que a velhinha morava naquela casa apenas na companhia do empregado e que o filho estava providenciando a mudança dela para um apartamento.

No dia seguinte, aquela cadeira estaria vazia, assim como todo o casarão, que seria demolido para dar lugar a um edifício. Mais um para arranhar o céu de São Paulo.

Diante dessas explicações, não tinha mais dúvidas. Muda e pensativa, voltei para o ponto, porque o coletivo que me levaria até o Centro aproximava-se.  Nada mais me restava a não ser embarcar. Sem banco vago, fiquei de pé, a cabeça colada à janela. Enquanto parte do corpo seguia nos embalos do veículo, a cabeça teimava em girar, acompanhando a direção do olhar.

Em mais uma de minhas andanças pela terra da garoa, vi outra cena (desta vez, noturna), a qual também merecia aquele registro digital, não pela beleza plástica, mas pelo significado, pelo que trazia de doçura em meio a uma tragédia social.

Um morador de rua dormia, enrolado no cobertor, para se proteger do frio. Isso, infelizmente, já se tornou comum nas grandes cidades, mas, o que me chamou mais a atenção foi um detalhe: abraçado ao homem, dormia um cachorro.

Não um totó de madame, cheiroso e bem tratado, e sim um animal sujo, magro e feio. Mas, entre os dois — mendigo e cão — havia uma cumplicidade, um carinho, um sentimento de “proteção”.

Mais uma vez deixei meu corpo me levar, enquanto, a cabeça, o olhar, o pensamento, ficava lá atrás. Uma pessoa, um cão, um gato, uma rua, uma casa, uma calçada… Histórias das quais eu não participei, mas que fizeram parte, por alguns instantes, da minha história da vida. E que resolvi dividir com vocês. Até o próximo encontro.

(2013)

Foto: Edsandra Carneiro

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