Vida doce a Giusto

Nossas conversas sempre tiveram um “quê” de comida. Para acompanhar as prosas, um petisco aqui, um almoço ali, um jantar acolá, um bolo mais adiante, chá, verduras frescas, frutas colhidas na hora e por aí vai… Nos últimos dias, tenho ofertado guloseimas doces ao nobre amigo Giusto. Justamente o que ele gosta: torta de coco, bolo de brigadeiro, pudim de leite condensado etc.

A Laura me recebe com todo amor. O marido dela é maestro na arte de contar algum causo. Nosso papo inicia na sala e termina na cozinha. Este homem grande tem o dom de recriar, pelas mãos, casas, vilas, animais… A vida em si, mas tudo em miniatura.

Nesses meus atos “quase involuntários”, ainda não tinha me dado conta de que Giusto está indo embora com uma doença terminal. Ou melhor: tinha esperança e assim continuava com o projeto de escrevermos um livro de contos pronunciados por ele.

Nos três anos desde que cheguei à Itália, nos vemos em dias de primavera e verão. No primeiro, meu italiano era de aprendiz. No segundo, a casa deles estava sempre cheia de visitas. No terceiro, marcamos no inverno que neste verão sentaríamos a cada entardecer para deixarmos a imaginação fluir.

Cheguei com o gravador tarde demais. Ele me diz que vai a Milão para uma consulta, mas retorna antes do outono. Afirmo que, em setembro, estarei ali, à sua espera. Amamos esse lugar mágico nas montanhas piemonteses. Nossas residências oficiais são em outros cantos, mas é aqui que a vida se apresenta como uma divindade. Ele sempre disse que gostaria de passar os últimos dias nesse pedaço de verde. Aqui estamos.

Ele comenta do jantar brasileiro que preparei em 2012 e oferto-o a “mesma” moqueca capixaba para matarmos a saudade de um lugar apenas descrito pelo sabor das palavras. O homem alto, bonito e forte, de 77 anos, agora está deitado. Saboreia o almoço no leito.

A vista que se tem pela janela deste quarto continua bela e esplêndida. Mas a luz do meu amigo está se apagando. No dia seguinte, abre-se em mim uma ferida. Sinto culpa e dor.

Culpa por não ter feito algo que foi sonhado. Ouço sempre: “Você deveria escrever um livro com as suas histórias.” Todavia, não são minhas.

Escuto, observo e passo adiante por meio das palavras. Mas, sofro com as crises de existência, com os bloqueios imagináveis, com o pânico de rede sociais virtuais, com as feridas internas… Muitas vezes, são textos escritos apenas em minha mente, nas noites de insônia. Não é fácil expressar por palavras a imensidão do viver.

Giusto tinha o sonho de escrever um livro e se dizia incapaz. Daí, acreditava que, por meio das minhas palavras, poderia alcançar o mundo. Falhamos por ter apenas sonhado. E Giusto falhou quando não mediu as consequências dos cigarros que fumava. Ainda assim, vivemos e aproveitamos o tempo para criarmos laços fraternos.

Laura e Giusto formam um dos casais que me adotaram quando cheguei à Itália. Laura, com o seu italiano perfeito, me fazia correções verbais de uma língua que aprendi de ouvido. Fantástica experiência! Nos tornamos amigas confidenciais. Giusto é do tipo pai e avô, que diz: “Em caso de temporal, ou se sentir medo durante à noite, venha para a nossa casa.”

Sou a caçula desse time forte. E posso lhe assegurar que o tempo que passamos com pessoas acima dos 70 anos é absurdamente enriquecedor (o mesmo vale se estamos com os menores de sete anos).

São dias de recordações. Mesmo que parte do cérebro esteja destruída por células malignas, ele ainda quer falar. Me ajeito a canto para escutar atentamente o que tem a dizer. Lembranças de jantares sob a rameira de jasmim; da boa verdura colhida na horta farta de variedades; do meu primeiro Gin and Tonic

Eu tinha feito um carbonara e passei muito mal do estômago. Fui à procura de Laura para se saber de um chá. E Giusto:

— Vamos tomar um Gin Tonic e você vai ver que melhora.

— Mas, eu não bebo álcool.

— Fique tranquila! A gente prepara algo mais suave para você.

Tiro e queda. A dor sumiu e foi uma das mais agradáveis sextas-feiras de minha vida. Se estava livre, sabia que as sextas de verão eram as tardes do gin. Assim como as quartas — ou qualquer outro dia da semana — podiam ser reservadas para o chá das cinco entre algumas amigas, todas com muita experiência de vida. Um barato.

Uma vez, alguém disse: “Ela ainda é uma menina.” Giusto, imediatamente respondeu: “Mas a cabeça é de quem já viveu muitos anos.” Foi quando deixei de me sentir inferior àquela gente grande. Não importa a nossa idade e sim nossa maneira de respeitar o outro, enxergar o mundo. Admiro essas pessoas porque sou respeitada por elas.

Sinto dor por ouvir:

— Grazie per avermi offerto la vita più dolce in questi giorni. Quero a receita do bolo de chocolate com brigadeiro. Deixa esse cansaço e incômodo irem embora que retorno logo. Um amigo me disse que são necessários nove meses para se curar… Depois eu volto novo.

Ainda que, às vezes, o percurso de vida nos seja um pouco amargo, é doce se despedir com uma afirmação dessas. Pode até fazer bem ao ego, mas destrói o coração por saber que esta possa ser a última vez em que nos vemos neste presente.

Espero que Giusto renasça, em algum tempo, em algum lugar, respeitando esses nove meses. Em nossos corações ele será eterno. Que a nova vida lhe seja doce.

PS

Escrito, em 26 de agosto, para expulsar a dor de saber que perderia um nobre amigo. Horas depois, naquela noite, Giusto dizia adeus a esta vida.

(Agosto 2015) – republicado em 2016

Foto: Edsandra Carneiro