Vitorinha

Dia desses, uma amiga cariocapixaba — devaneio neológico para tentar explicar alguém nascida no Rio de Janeiro mas vivente em solos capixabas — me enviou um vídeo de um programa de uma rádio, em São Paulo, no qual o locutor e demais participantes faziam diversos elogios à capital do Espírito Santo.

“Vitória é um dos lugares mais lindos do mundo”, disse o apresentador. Depois continuou, “se você acha o Rio de Janeiro o máximo é porque nunca foi para Vitória”.

Ao ver aquelas imagens e ouvir tais comentários, senti uma saudade, em tom exageradamente nostálgico, de uma ilha com perspectivas de continente, dentro de um “ovo”.  Para os íntimos da terra dos aimorés, goitacás e tupiniquins, pode-se dizer Vitorinha. Um lugar onde tudo acontece e todos se aglomeram entre o céu, o mar, o Sol e as montanhas.

Cidade tropical com diversas praias e parques. Em especial, a Praia de Camburi, litoral onde eu costumava caminhar, ou correr, atravessando os seus seis quilômetros de areia poluída pelo pó de minério na indústria movimentada internacionalmente. Mas, ironicamente, Vitória — e amplio aqui para todo o Espírito Santo — é também, praticamente, desconhecida pelo mundo.

Há pouco mais de oitos anos vivendo na Europa, morando em dois países e percorrendo por outros diversos, toda vez que alguém me pergunta sobre minhas origens, cito o Espírito Santo e as reações são, relativamente, as mesmas: “Ahm? Pode repetir? Onde fica? É perto do Rio? Bahia?…”.

Se digo brincando, “sou da terra do Rei Roberto Carlos”, a resposta é muito mais divertida. Geralmente: “Ah sim! O grande jogador de futebol!”. Daí, quando começam a lembrar de Pelé e outros, recorro ao mapa virtual, em meu celular, para mostrar a posição do estado e desbravar as várias características daquela terra. Quando tenho tempo para uma breve “apresentação” sobre o Espírito Santo, percebo faces estupefatas com exclamações do tipo: “Que lugar lindo! Mas, nunca ouvi falar! Como pode?…”. Outros vão dizer: “Viajei para o Rio de Janeiro, depois fui para Salvador… O Brasil é enorme, não dá para conhecer tudo!”.

Em 2010, quando estive pela primeira vez em Amsterdam, Holanda, “trouxe” o Espírito Santo na bagagem. Presenteei os produtores de uma TV com vídeos, livros de culinária e artesanatos de uma região do sudeste, como naquela campanha dizendo “Conheça o Espírito Santo”. Mas, nada! O povo estava interessado mesmo apenas em um trabalho sobre a Amazônia. Pois bem, foi o norte brasileiro quem me abriu as portas para o estrangeiro.

Portanto, com a mudança para a Europa e o passar dos anos, as frustrações pelo desconhecimento de uma terra se atrelaram à minha descaracterização enquanto identidade. Fato é que, depois de um certo tempo, assimilando e processando diferentes circunstâncias, a gente não sabe mais quem é.

Veja bem: hoje, depois de “trocentas” sessões de terapia (em inglês, italiano e, atualmente, em holandês), percebo não ser mais 100% brasileira, como também não sou holandesa e muito menos italiana. A gente se perde nesse misto de contexto antropológico, cultural, econômico e social. Contudo, ganhamos em crescimento de valores agregados e valorizados. Passamos a fazer parte de uma contextualização.

Quando estamos “de fora” de um ambiente físico ou situacional, reconhecemos os nossos deslizes enquanto sociedade. Ao mesmo tempo, associamos e valorizamos mais as nossas raízes permitindo crescimento em novos solos. E, de certo modo, em algum lugar do nosso maior recôndito, vamos alimentar e processar memórias de um passado ainda muito presente.

Nossas origens revelam muito de nós. Contudo, não cabe a nós a interpretação feita pelo o outro. É como em uma entrevista para um repórter: suas palavras, quando editadas, podem ser apresentadas de modo sucinto e realista, como também podem ser manipuladas para um contexto alterado, quiçá bom ou ruim.

Muitas vezes, somos extremamente críticos em relação ao nosso lar e esquecemos de observar a beleza em torno a nós. Comparar chega a ser irrelevante porque cada um é único em sua composição.

Para você ter uma ideia, depois de anos, apenas há poucas semanas consegui chegar a um lugar onde o nome Espírito Santo foi facilmente reconhecido de imediato. Em busca das minhas origens italianas — entre muitas outras —, fui a Gazzuolo, província de Mântua, na região da Lombardia. Você já ouviu falar? Provavelmente não, né?! Porque até mesmo boa parte de italianos nem sequer conhece.

Na prefeitura da cidade, quando citei o estado capixaba, — para minha surpresa — a funcionária local se comportou de modo cotidiano e deu continuidade à conversa em tom casual. Não precisei retificar ou posicionar o Espírito Santo entre Belo Horizonte, Rio, São Paulo, Salvador e outros lugares.

Claro!, muitos italianos da região de Mântua, bem como de outras partes do país, emigraram para o Brasil. Todavia, o importante é ressaltar que foi em uma cidadezinha, com pouco mais de dois mil habitantes, onde fui vista por um rosto desconhecido. Ou melhor, não precisei fazer nenhuma associação para explicar onde nasci, mas sim apresentando-me puramente como a soma do que eu fui, sou e onde estou.

Quando somos reconhecidos pelo o outro, percebemos valer a pena a desconstrução de tantos estereótipos e barreiras criadas para nos deixarmos fechados em nosso mundinho repleto de egoísmo. Porque o outro não é simplesmente um oposto.

Sabe? Se quebrarmos o “ovo” para preparar uma omelete, a simples mistura da clara e gema nos permite homogeneizar as nossas mentes evitando a intolerância e comparação ao outro — ao que é distinto à nossa visão entrementes capixabas, cariocas, mineiros, paulistas, holandeses, italianos ou quaisquer denominações criadas em modo distinto.

Quando colocamos o pé para fora de casa, —  entenda-se: visitando o nosso quintal, o nosso bairro, a nossa cidade, o nosso estado, o nosso país e por aí adiante — o mundo pode se revelar uma frigideira, de tão pequeno.

Pode soar banal, mas aquilo considerado tão diferente enquanto condimento pode ser tão similar ao nosso paladar e, paradoxalmente, o que é invisível ao nosso olhar se torna vital ao nosso coração.

Portanto, viaje. Nem que seja para dentro de si mesmo. “Você não vai se arrepender”.

 

Outubro de 2020

Foto da autora

Edsandra Carneiro escreve, eventualmente, às quartas-feiras.