Antonieta

Bem ajeitada em sua nova cama, apresentava semblante de quem estava curtindo um repouso. Obviamente, nada de quartos separados, porque ficaria no mesmo cômodo com o marido. Assim, o novo alojamento só precisaria de alguns ajustes. Aqueles os quais ela havia descrito e reescrito algumas vezes, de modo que todos compreendessem os seus desejos póstumos.

No caminho para o novo lar, alguém tomou o rumo oposto daquele combinado e a levou para perto da filha. A multidão, como em um rebanho de ovelhas, apenas seguiu o “pastor”. No frio de janeiro, o vento gelado perturbava o silêncio balançando as árvores ainda sonolentas para o despertar da primavera.

Foi quando, do outro lado do campo, dois homens caíram quase em desespero:

— O corpo não viria para cá!? — exclamou, perguntando, um.

— Você entendeu tudo errado. E agora? — respondeu o outro, buscando a pá e o carrinho para escavar.

Saíram correndo de fininho e, quando chegaram perto dos engravatados, se entreolharam, tentando encontrar um modo discreto de fazer um buraco na terra, algo impossível de ser despercebido. Daí, alguém gritou:

— Gente! O que vocês estão fazendo com a Antonieta aqui? Vocês tomaram o caminho errado. Quem disse que ela deve ser enterrada neste lugar?

Uma anciã, com uma mão na escadeira e a outra escorada em uma bengala, frisando os olhos para enxergar o que via a frente, interviu aos coveiros.

— Podem parar, por favor. Esta é a tomba da Antonella. Onde está o túmulo do Ralf? Para que canto fica?

— Mas é claro! Tinha que ser! Isso é típico de Antonieta. Sempre ficávamos perdidos quando viajávamos. Não seria o enterro dela se não estivéssemos atrapalhados girando o mapa da necrópole ao contrário — gargalhou o irmão.

Pois bem, você já se divertiu durante ou depois de um ato fúnebre? Pode parecer macabro, mas o funeral de Antonieta foi “legal” — como respondi a uma colega de trabalho quando veio me dizer “condolências”. Óbvio que esta não me deu por normal e perguntou se eu estava bem…

Bom, na verdade, devo confessar: depois do enterro, me peguei erguendo uma taça de vinho branco francês, de rótulo renomado, fazendo um brinde à Antonieta. Sinceramente, jamais poderia imaginar que fosse gargalhar durante uma recepção íntima para amigos e familiares de uma senhora que se foi bem perto dos seus 90 anos.

Antonieta, depois de uma semana repousando em um caixão, recebendo familiares e homenagens de diversos lugares do mundo, pode, enfim, ser enterrada como desejado, ao lado do marido, no mesmo cemitério no qual boa parte de outros familiares dormem o indescritível sono da morte.

Pode ser um paradoxo, mas Antonieta me fez sentir viva. Tomar vinho para celebrar a vida e a passagem para a morte foi surreal. Afirmo: despertador.

— E gostaria de levar isso para a minha despedida, se, por um acaso, eu tiver uma, né?  Ao menos ter parte das cinzas nas montanhas perto da minha guru Cecchina e a outra em algum oceano.

Então, voltando a Antonieta. Eu a conheci apenas pelas histórias dos filhos e netos. Filha de imigrantes europeus, nascida no Oriente no final dos anos 1920, soube o significado de sobreviver a guerras, emigrar, imigrar, não ter nada e ter tudo. Aprendeu a se fortalecer e dar valor às coisas boas — quero dizer, a se permitir o melhor.

Talvez, por isso, a partir dos anos 1980, começou a escrever os seus anseios para o dia em que faltasse. Entre as vontades:

— Nada de coroa de flores. Isso é muito triste. Quero buquês de rosas e belas flores. E, ah! Vinhos de excelente qualidade. Vinho! Vou pegar no pé de quem beber cerveja no meu funeral. Por favor, me respeitem! Eu sou uma senhora, esposa, mãe e avó, mereço um bom vinho francês.

“Oui, mon chèri!” E se fez jus o sonho de uma casa na França, um paraíso em terras francesas com direito à própria vinicultura. Ainda assim, com o passar dos anos, novas cartas de despedidas, instruções póstumas e revisões de testamentos. Preparava-se para a morte e essa sequer dava o ar da graça.

Então, Antonieta aproveitava: viajava, conhecia novos lugares, experimentava novos sabores, aprendia novas línguas e se comunicava na sua elegância de ser. Há quem diga, de nariz empinado.

Quiçá por ser uma mãe orgulhosa, ao criar um método próprio para ensinar o filho com dislexia — na época associada com incapacidade intelectual —, e este estudar e se tornar um “homem de valor e de bens”, amante da escrita e da leitura.

Ou, por ser alguém que, com a perda da filha, criou o neto contemplando-o em uma diversidade cultural. Não importava a opinião dos demais: ela desfrutava dos valores de se viver uma vida mista. E, assim, se foi.

Sabe? Se todas as despedidas pudessem ser celebradas com um brinde à “vida vivida”, entenderíamos que tudo é tão passageiro e só nos resta apreendermos a graça do desapego. Tudo fica mais leve.

E como disse meu amigo: “Aceito a partida dela. Estou ok. Ela viveu uma vida linda e sabia que, a qualquer momento, poderia ir embora. Talvez seja por isso que ela aproveitou bem e viveu muito mais do que o esperado”.

Janeiro de 2018

Foto ilustração: Thomas Martinsen

Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras, no clubedecronicas.com.br

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