Minha Primeira Vez

(Por Cecília Ribeiro) Animada com a graduação em Jornalismo, comprometi-me a participar de dois eventos acadêmicos. Um no Sudeste do Brasil; outro no Norte. O segundo ocorreria um dia após o término do primeiro. Fui da Cidade de Vitória para a Cidade do Rio de Janeiro de ônibus. Meu próximo destino seria o Estado do Pará.

Óbvio: para chegar à Cidade de Belém o mais rápido possível, a opção rodoviária não seria viável. Então, aproveitei um lapso de coragem e adquiri uma passagem de ida de avião. O medo foi tamanho que demorei dois meses para comprar a volta.

Esse meu ritual em relação a viajar de avião é reflexo do pensamento na minha família: quem anda de avião é rico. E não só isso: essa pessoa é dedicada à manutenção do seu status quo. Tem coisa mais privilegiada usar um meio de transporte entre os mais seguros, mas, ainda sim, causando tanto pavor, principalmente entre as classes menos abonadas?

Ainda no Rio, não consegui me acostumar à ideia de, em breve, voar. No dia da viagem, a falta de experiência com o tópico “bagagem de mão versus bagagem despachada” ficou evidente. E se não deixassem despachar meu colchonete junto com a mala? Teria de arriscar.

Ao chegar ao estacionamento do aeroporto, percebi tratar-se de lugar no qual nunca havia estado. Tudo era muito: carros, barulhos, malas, carrinhos, seguranças, gringos, conversas… E as pessoas? Encontraria algum famoso ou famosa?

Cheguei bem adiantada para o voo. Depois das burocracias de check-in (tinha feito on-line, achado complicado, e estava insegura), despachei a mala sem maiores problemas. Cheguei a pensar se daria conta do recado. Sentei junto ao portão de embarque indicado e aguardei.

Todos passando à minha frente, durante aquela espera, estiveram, por alguns segundos, dentro do voo 2010 da Gol. O pensamento irracional — se cair, quero estar acompanhada do máximo de pessoas —, tornou-se reconfortante para mim.

Conversei com duas senhoras aguardando voo para Fortaleza. Pareciam tranquilas. Flertei com um cara lendo livro no banco da frente. Parecia tranquilo. Acariciei o gatinho de uma moça do meu voo. O bicho parecia mais tranquilo que eu. Desejei ardentemente me sentir assim.

Mas só pensava morrer em trágico acidente de avião. Sentada ali, quase ouvia a vinheta do Plantão da Globo. Todos iriam temer esse número daqui para frente: 2010, sinônimo de má sorte.

Faltando pouco para a partida, me posicionei na fila relativa ao número do meu assento. Tremia feito vara verde e suava frio. Tentando me manter sob controle, ouvi uma voz simpática:

— É sua primeira vez né?

Virei-me em direção à pessoa, respondi alto demais, pelo nervosismo:

— Ah, sim!

— Sempre fico muito nervosa, e olha que nós viajamos muito — disse, apontando para um homem atrás dela.

— Estávamos na Flip[1] — continuou.

Acenei positivamente, dizendo:

— Sim. Fiquei sabendo ter sido ótima. Uma amiga minha foi também.

— É… Agora, só quero chegar à minha casa. Moramos em Belém. Vai a passeio?

Respondi não. Mas aquele pequeno diálogo tornou-me amiga de grande parte das pessoas ao meu lado, inclusive a moça do gato. Ela pediu para eu e a mulher da Flip vigiarmos a Tapioca enquanto comprava um café.

Quando os clientes Preferenciais e Premium começaram a entrar, nossa conversa foi ficando mais séria e urgente:

— Vou te falar a verdade. Estou medicada. Sempre passo mal. Não há quem se sinta segura lá dentro, não importa o que digam — disse a mulher da Flip.

Paralisada de medo, concordei com a cabeça. Seguimos pelo túnel levando à porta de entrada do apertado avião. O chão parecia solado de brinquedo velho do parque de diversão da minha cidade. Tive dificuldade em encontrar meu assento. Pedi ajuda à comissária e me acomodei. Tentava ler as expressões dos rostos das pessoas.

Ajustei minha postura para a decolagem, mas não conseguia encontrar posição confortável. O avião taxiando pela pista, minha tensão aumentando gradativamente. Notei a menina sentada ao meu lado assistindo algo na Netflix, junto do irmão.

O piloto anunciou:

— Atenção, tripulação! Preparar para decolagem.

Alinhei a cabeça na cadeira e apertei o encosto do braço, sem perceber a mão da menina já lá. Paralisei. O veículo, pegando velocidade, fazia um barulho infernal. Lembrei-me da moça da Flip falando da falta de segurança. Será que ela também estava tão apavorada quanto eu? Senti, pouco a pouco, levantarmos voo. Ouvi um barulho estridente. Meus ouvidos entupiram. O único som presente era o ruído da aeronave. Não parávamos de subir.

Os comissários voltaram a circular. Luzes acenderam, ouvi um apito. A decolagem havia acabado. Continuava na mesma posição, congelada. Era como se qualquer movimento brusco meu prejudicasse a estabilidade da nave. Enquanto isso, os irmãos ao meu lado permaneciam como antes, entretidos com a Netflix.

O serviço de bordo começou. Uma comissária, passando com dificuldade pelo corredor estreito, me ofereceu água. Gestualmente, recusei. Não conseguia dizer uma palavra. Comecei a mover meu maxilar, na tentativa de desentupir os ouvidos, diminuindo assim o desconforto.

O voo era de quase quatro horas. Tinha de me acostumar com aquele perigo iminente. Tentei conectar o wi-fi no celular; não consegui. Tentei abaixar para pegar meu livro; idem. Quis chorar.

Olhava no relógio de dez em dez minutos. O tempo não passava. Por vezes, nos momentos de calmaria, quase pegava no sono. A menina ao meu lado checou o  aplicativo: faltavam trinta minutos para o pouso. Respirei aliviada. Só precisava sobreviver mais trinta minutos.

Nada se compara ao alívio de sentir a roda do avião tocando o solo. A essa altura, já me sentia mais confortável com possibilidade de acidente, pois não estava no ar. Foi prazeroso levantar da minha cadeira, esticar as pernas e pegar minhas coisas. Uma sensação de poder me tomou.

Aos poucos, as pessoas foram se movimentando, evacuando a cabine. Sobrevivi. Aliás, todos nós sobrevivemos. Ainda voltaria de avião, mas agora pelo menos sabia: poderia ter aproveitado mais os lanches oferecidos pela companhia.

Dias depois, no voo de volta para a Cidade de Vitória, conversando com um passageiro, descobri: turbulências nunca derrubam aeronaves. As quedas são imprevisíveis.

[1] Feira Literária de Paraty, cidade histórica localizada no litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro.

Ilustração: Priscilla Sena