Iolanda

Olhava-se no espelho e estava inconformada com o novo “look”. Havia pintado os cabelos, mas algo ainda a incomodava. Passava a mão de um lado, tentava abaixar do outro, virava-se de costas, buscava encontrar o melhor ângulo para se sentir bela. Por vezes, olhava por cima das armações dos óculos. Outras, enxergava-se por de trás das lentes grossas, com a desculpa de que, assim, talvez, estivesse melhor.

— O que foi? — pergunto.

— Ah! Olha só meu cabelo. Não é mais o mesmo. Está duro. Os cachos vão ficar feios — responde de forma melancólica, incorporada no seu espírito explosivo de ser.

Gesticula a cada palavra e a entonação eleva-se conforme o grau de humor. Estávamos só nos duas no banheiro do Teatro Carlos Gomes, em Vitória. E a minha reação foi acarinhar os cachos dela.

— Como assim? Olha o meu? Passa a mão aqui… Alguma diferença? — retruquei.

— Eu não enxergo direito.

— Acerte os óculos. Assim! Basta apenas sentir aqui para ver que está cheio de vida. E seus cachos serão lindos. Deixe-os naturais, como vierem. Vai alisar para quê?

— Ah, seus cachos são definidos. Quem dera os meus pudessem ser assim?

Já elevava o tom de nervosismo. Tomei a mão dela e deixei sobre meus cabelos. Tateamo-los por inteiro. Pedacinho a pedacinho, mostrava similaridades e beleza em cada novo fio que acabara de nascer na cabeça dela. Até que, em um instante, ela consegue ver além do que as próprias lentes a deixam ver.

— Acho que vou mantê-lo curtinho para a viagem. Menos trabalho, né? Depois, deixo crescer…

Pode ser uma conversa banal entre duas mulheres preocupadas com o visual. Sim, pode ser. Mas era a terceira vez que via Iolanda.  Duas, depois dela ter se recuperado de uma doença que quase a levou embora deste mundo. Um tumor corrompeu o seio direito. A situação se agravou na axila e tomou o fígado. Apesar de ter sido metástase, os médicos disseram que a cirurgia foi um sucesso.

E ainda sofreu com uma infecção. Todavia, conseguiram reverter esta situação com antibiótico. Faz quimioterapia. As pessoas dizem que ela tem sorte. Topou superar o medo para fazer sozinha uma viagem internacional. Brinca que precisará de muitos comprimidos fortes para dormir no avião. Ela não é fácil.

Nosso contato, apesar de ser inicial, é intenso, e nos sentimos íntimas para falar as nossas opiniões. Por alguma razão, temos, no corpo, marcas da vida. Dores incomparavelmente diferentes, mas força de vontade de viver. Com uma grande amiga em comum, nos conhecemos bem mais do que nos vimos pessoalmente.

Como na versão cantada por Chico Buarque, também estava certa de que me sentiria descoberta assim que a reencontrasse. Iolanda é eterna, como na música. Única na superação. Exclusiva por xingar a tudo e a todos nos momentos de raiva. Febril quando dispara a falar e esquece de ouvir o que o outro tem a dizer. Ela é ela. A história de vida é digna de um livro, e não posso aqui expô-la, sem pedir permissão. Iolanda não pertence a uma única pátria.

Iolanda é maestro do próprio concerto. Como na Nona Sinfonia de Beethoven, ela deixa a bela centelha divina da alegria nos envolver e nos encanta pela maestria em conduzir a vida. Para ela, não há meio termos. Seus acordes soam além das estrelas, ainda brilhando intensamente no céu de tantas outras Iolandas.

(Abril de 2014)

Foto: Edsandra Carneiro