A Filha do Pastor Cresentil

(Por Eduardo Selga)

Desconheço profundamente as mais comezinhas leis da acústica. Por esse motivo, o fenômeno que acontece na porção em que moro do bairro Itararé me soa um tanto mandingueiro, bruxaria as boas, muito embora, claro, os neurônios racionais de minha mente, sempre às turras com os outros, os do pensamento mágico, considerem a hipótese um absurdo tão completo que só merece o escárnio.

Não sei se a resposta estaria no regime de ventos, mas o fato é que de onde moro é possível ouvir com nitidez sons produzidos em volume apenas razoável, estando sua fonte a muitos metros de distância. Nas primeiras vezes em que me dei conta do fato, além da surpresa, fiquei com uma leve desconfiança, mais uma vez rechaçada pela racionalidade, de que eu tivesse ouvidos de tuberculoso. Bobagem, evidentemente: o máximo que me assalta por vezes é a gripe e a “tosse de cachorro” antes de dormir.

Disseram-me, na tentativa de sossegar minha curiosidade, que ventos… ora, ventos! Eles nada teriam com o caso, e sim o arranjo geográfico. Morar na transição do Baixo para o Alto Itararé causaria o fenômeno, por ser uma espécie de “concha” ou “bacia” cujas paredes o som percorreria, batendo e rebatendo nas casas, ricocheteando pelas ruas e becos. Sendo eu um profundo desconhecedor desses mistérios, vá lá que fosse.

Pois muito bem. Em determinada noite, fim de semana, entre um e outro cálice de vinho, mais ou menos na metade de um Gabriel García Márquez, passei a ouvir, em pleno Itararé, o que me pareceu vizinho do surreal: um canto lírico feminino acompanhado pelo som inconfundível de harpa.

A princípio meu pensamento mágico suspeitou que fosse algum fantasma, afinal tenho vários deles a acompanhar-me insistentemente como se fizessem parte de um fã-clube. Sempre a postos, Dona Racionalidade, uma velha ranzinza que gosta de usar ternos e cachimbos ingleses, repreendeu-me: e acaso fantasma era coisa que existisse?

Era uma música suave, mas, possivelmente em função do vinho tinto já um pouco além da conta, a letra se me mostrava uma barafunda poética, chumaço de algodão esgarçado ao máximo. Ou, ainda, bêbado que trocasse as pernas ao, teimosamente insurgindo-se contra as leis do equilíbrio, caminhar. De vibrato em vibrato, passando por outros ornamentos vocais, jurei ter ouvido mais de uma vez “abre bem as portas do teu coração / e deixa a luz do céu entrar”. No entanto, havia um problema com essa percepção auditiva: a igreja católica mais próxima estava longe demais, noutro bairro. Mesmo para as façanhas que o som costuma praticar por aqui.

Era a filha de um sujeito chamado Cresentil —de tanto perguntar com insistência e alguma sutileza fiquei sabendo no dia seguinte. Descreveram-na uma mulher sem sorrisos, um ar desfalecido, silenciosa no trato com os vizinhos. Semelhante às criaturas humanas que vagam sobre a Terra, todas de algum modo perdidas, ela fora registrada com algum nome, mas, fosse qual fosse, ela não tinha identidade própria: era a filha do pastor evangélico Cresentil, mãe prestimosa e esposa dedicada, do tipo que jamais levanta a voz se essa eventualidade significar possível ameaça a um estado de coisas entendido como “harmonia do lar”. De casa para a igreja, da igreja para a casa, muito ciosa das coisas do espírito, que pareciam exigir determinada estética visual: um cabelo longo, umas saias longas, um olhar longo debruçado sobre as páginas do Livro Sagrado. Se havia algum momento de viva alegria, era quando cantava no coro da igreja evangélica, com o apoio do qual muitas vezes fazia apresentações a solo.

Também ela ignorava as leis da acústica, suponho. É que, militando na crença protestante, o fato de entregar sua voz ao hino católico “Deixa a Luz do Céu Entrar” era, no mínimo, incomum. Talvez uma traição, conforme o significado e intensidade dos vieses lançados pelos olhares alheios. Afinal de contas, tratava-se da filha do pastor Cresentil e noiva de Jesus. Assim sendo, ao entoar o hino católico ela certamente desconhecia o quanto sua voz soprano caminhava pelo bairro e chegava às casas relativamente distantes. Não era nenhuma Maria Callas que se extraviou e veio parar em Itararé, mas a voz era quase divina.

Fiquei intrigado. Mesmo sem gozar de nenhuma proximidade, no primeiro ensejo que o acaso me desse eu lhe faria perguntas sobre os motivos. Não se tratava de curiosidade, apenas: também preocupado com o que diriam e pensariam dela os integrantes de sua congregação —à qual jamais pertenci—, como se isso fosse assunto que me dissesse respeito. Na verdade, eu a supunha dentro de certos padrões, mas ela saíra do roteiro, do caminho pré-estabelecido pela minha idealização, e, sensor de costumes disfarçado de “gente boa”, queria saber os motivos. Muita pretensão.

Noite dessas eu a encontrei. Expus meu desassossego. Diante da abordagem inesperada, o susto, a estranheza. Quem eu era, afinal? Rápida apresentação de mim e dos inquietantes fatos ouvidos, do hino, da harpa. Logo após a pergunta, sorriu lindamente, como apenas o feminino é capaz, e me respondeu, desobstaculizando seu caminho em direção à igreja, hinário junto ao peito:

— O Senhor é ecumênico, mas a harpa é por conta do senhor.

Fiquei ali, com cara de bunda, e com a certeza de que era preciso substituir a marca do vinho que fizera meus ouvidos trocarem as pernas.

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