A torta de Tabarino

Abro o papel laminado e ainda sai um pouco de fumaça, carregada com um aroma estonteante, daqueles iguais aos do desenho animado do Pica-pau. Lembra da nuvem que hipnotizava o pica-pau e levava-o até o banquete?

No meu caso, estou no meio da estrada, dentro da floresta e a chuva começou a cair. Acabo de sair do restaurante onde comecei a trabalhar há alguns dias. Estou perto de completar os meus 31 anos de idade e hoje vivi algo como uma criança de cinco anos, daquelas curiosas para saber como se prepara uma torta de pêssego e ficam pelas beiradas observando fazer.

Enquanto trabalhava lavando pratos e limpando a cozinha, fazia algumas perguntas sobre a torta. Algo como: “É possível outros sabores com a mesma massa?” etc. Tenho o desejo de aprender a cozinhar bem. Amo culinária. Mas, na verdade, não sou muito fã de doces. Gosto de sorvete de pistache, do pudim da minha mãe e bombom Ferrero Rochê. Algo como uma pitadinha para adocicar a boca e basta. Quanto à torta… Ela mal saiu do forno e ele me perguntou em italiano:

–– Quer um pedacinho?

Vou responder o quê? Com o rosto queimando de vergonha, disse no impulso:

–– Sim.

–– Está meio quente, espere até chegar em casa…

–– Muito obrigada.

Andei alguns passos e não resisti… Não consigo lembrar da última vez em que comi um pedaço de torta, fora da Itália, sentindo tanto prazer em saboreá-la.

Penso que deve ser a energia que tem se manifestado na minha vida nas últimas três semanas, assim que cheguei este lugar. Que Itália! Aquela que abre o peito e recebe a gente de coração aberto. Aquela que lava a alma e que aquece com amor de mãe. Eu me refiro à Itália da Tiziana, do Carlo, da Francesca, da Laura, do Giusto, do Arjan e de tantas outras Itálias que continuo encontrando a cada dia. A começar pelo lugar onde resido…

O homem da torta é o senhor Carlo. Falante, sempre me recebe com “Brava, grande piccola!”. Segundo ele, sou pequena mas com a cabeça de gente grande. Não sei! Comecei a vida agora e tenho tanta coisa para aprender… Mas sei que este senhor tem muito a ensinar.

Dizem que ele não é o mesmo depois de sofrer um grave acidente. Foi atingido na cabeça por uma árvore enquanto fazia o corte da planta. Ficou em coma. Ao se recuperar, passou a trabalhar com a esposa no restaurante que possuem em Tabarino. O que posso dizer é que, apesar dele insistir não ser ativo como antes, para mim guarda uma rica sabedoria e ainda tem muito a nos oferecer.

E a Tiziana? Mulher encantadora. Charmosa, é daquelas cozinheiras italianas de mão cheia. Prepara uma comida de fazer você limpar o prato com o pão (coisa que a gente aprende, aqui na Itália, a fazer no almoço e no jantar). É, como diria na linguagem brasileira, daquelas que “rodam a baiana” se alguma coisa não estiver correta. Ela é meia mãe, sabe? Daquelas que dizem: “Menina! Vá já comer antes que a comida esfrie.” E diz que preciso engrossar, ou seja, ganhar uns quilinhos.

Agitada, não para um segundo. Está sempre disposta, mesmo com as dores na coluna. Com o senhor Carlo, formam um belo casal. Resolveram me adotar. Afinal, meus pais biológicos estão no Brasil, a mais de nove mil quilômetros de distância.

Comecei a trabalhar na Osteria e não dominava nada de italiano. Sabe quando uma criança nasce e todos precisam se fazer entender? Essa é a minha nova experiência e é com este casal que estou aprendendo a ver como a vida é e continua bela.

Por falar nisto, bela é uma moça que também me recebeu com um calor imenso e que me olha nos olhos e diz: “Você é tão cheia de luz!” Como poderia imaginar ter um contato tão amigável com ela? Francesca diz que, no passado, já fomos irmãs. E desta artista ouvi uma das mais belas explicações sobre o que pode ser casa em uma obra de arte que ela mesmo produziu.

Descobrimos também que temos muita coisa em comum, inclusive o fato de eu ser parceira, hoje do mesmo homem que um dia ela já namorou. Já rimos e nos emocionamos, porque nossas experiências em Amsterdam tiveram reflexos similares em nossas vidas.

Independência é o nosso forte. A felicidade que esbanje é capaz de contagiar a qualquer um que cruze o caminho dela. Mas depende destes perceberem isso, pois nem todo mundo é capaz de ver tamanha felicidade. O que faz ser tão gostoso quando a gente vê brilho nos olhos das pessoas.

E a Laura? Uma graça de pessoa. Daquelas que, gentilmente, me convidam para um chá das cinco com as amigas. Daquelas que me levam para fazer compras e conhecer as divindades dos mercados de uma pequena parte da região Piemonte. 100% prestativos, ela e o marido Giusto, são daqueles que me ligam para saber se a minha casa está bem aquecida. E me dizem: “Em caso de sentir medo durante um temporal, venha para a nossa casa.” Isso é divino!

Bom! Ficaria horas aqui descrevendo cada pessoa que tem feito o meu início na Itália ser mágico. A começar pelo meu parceiro Arjan, que me apresentou este lugar. Um companheiro que respeita as diferenças e entende a necessidade de liberdade para as minhas escolhas.

Apesar de ela bater na porta de vez em quando, aqui não há espaço para tristeza, mesmo que o tempo seja de chuva e com névoa que te deixa enxergar apenas alguns metros de distância; mesmo que você more sozinho em uma casa com mais de 300 anos a 700 metros de altitude… Sempre há alguém para lhe oferecer algo, para lhe oferecer generosidade.

Posso afirmar que a energia humana que recebi por estas terras me fez perceber que, quando decidimos mudar, sempre há algo a nos fazer acreditar estarmos no caminho certo.

Um caminho que surgiu a partir da coragem de se reinventar, de começar de novo, de se enxergar de outro ângulo. Um caminho que me permiti sentir viva. Um caminho que cria novos sentidos para estar neste mundo. Um caminho que me permite voltar a escrever e expressar sentimentos. Um caminho que me permite construir narrativas por meio de gente que faz a vida valer a pena.

(Outubro de 2012)

Foto: Edsandra Carneiro

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