Maria — a Mona Lisa, o Macaroon e a Torre

Ainda na época do namoro, ele a prometia que, se um dia casassem, a Lua de Mel seria em Paris. “Ah! Paris, a capital do amor!” — exclamava ela, suspirando de entusiasmo e excitação, almejando aquele momento tão desejado. “Nossa! Que calor!” — sentindo uma vivacidade nascendo entre suas entranhas enquanto delirava de prazer, só de pensar em como seria a sua primeira noite de amor.

Casaram-se na igrejinha do povoado. Ele mesmo fez o bolo da boda. Afinal, conhecido confeiteiro da região, esbanjava seu charme adocicado por onde passava. Era o galã cobiçado com a dama encantadora, tagarelavam as boas línguas. O vestido da moça fugia do tradicional. Claro! Foi inspirado em uma revolucionária designer de moda francesa.

Contudo, passados quase cinquenta anos, Maria ainda espera por sua Lua de Mel na cidade francesa. Na época, sequer saíram do seu território nacional. Viajaram para algum lugar de mar, o qual ela mesma faz questão de não lembrar.

Pelo visto, sua primeira vez foi um desastre. Quando comenta, deixa ao vento palavras com fiapos de predicados dopados com alguns verbos bem pejorativos. Evita manifestar o sujeito principal dessa oração: perdeu a fé. Ainda assim, gerou frutos. Mas, a amargura da falta de gozo perdura até os dias de hoje.

Veja bem! Maria e Giuseppe não são tão limitados financeiramente. Observando algumas joias dela, é possível confirmar alguns carinhos caprichosos do marido. Todavia, pela postura de Giuseppe, viajar parece ser uma questão cultural de aprendizado tendo o idioma como barreira natural. E, hoje em dia, encontram na velhice uma desculpa para evitarem sair da região onde moram. Ao máximo, permitem-se irem ver o mar uma vez por ano, ao lado dos filhos e netos.

Porém, em suas poucas argumentações, Giuseppe costuma afirmar ter apenas postergado uma viagem que nem ele mesmo sabe se um dia irá acontecer. Afinal, atualmente, o passado está mais ativo em sua memória do que o seu próprio presente. Sua atual reminiscência é seletiva, muitas vezes necessita receber uma mesma informação várias vezes até conseguir processá-la. Depois, tudo é deletado e apenas alguma coisa lá no distante calhado ressurge como nova.

Maria, enquanto filha de uma sociedade onde mulher deveria seguir apenas aquilo o que marido dissesse ou propusesse, ficou perdida no tempo e amargura em negar constantemente o presente.

Depois de anos de prosa, ouvindo os lamentos de Maria, Sofia sugere uma viagem dos dois a Paris. Tudo por conta dela. Ingênua ideia! “Não há como recuperar cinquenta anos de história” — reflete Maria. Ainda assim, a moça insiste. Depois de meses, Maria sugere à moça fazer, no lugar do casal, ela mesmo a tão sonhada viagem.

Como assim? Ela explica: Sofia percorreria por todos os lugares que ela, Maria, desejou tanto conhecer. Contudo, já não teria visto tudo pela televisão, livros, jornais e, ou, revistas? “Não!” — inflava a senhora. Negava e sentenciava dizendo sobre ninguém nunca ter ido a Paris, exclusivamente, por ela. Desse modo, Sofia aceitou a contraproposta.

Maria só não sabia que Paris também era o sonho romântico de Sofia, mas nunca revelado. Apesar de viajar por vários lugares do mundo, Sofia sempre evitou Paris por sonhar ir ali acompanhada pelo seu príncipe encantado — serão as histórias infantis causadoras de tantos danos cerebrais a partir das absurdas overdoses de romantismo? Bom! Deixa isso para lá.

Ao cair da noite, enquanto dirigia adentrando a Cidade Luz, via surgir a magnífica Torre Eiffel bem distante no horizonte. Seu coração começou a bater bem mais forte quando ouviu, em sua selecionada lista de músicas francesas, a canção La vie en rose, de Edith Piaff:

Voilà le portrait sans retouche de l’homme auquel j’appartiens. Quand il me prend dans ses bras, Il me parle tout bas, je vois la vie en rose” (“Aí está o retrato sem retoque do homem a quem eu pertenço. Quando ele me toma em seus braços, ele me fala baixinho, eu vejo a vida em rosa” —  numa tradução livre para o Português.)

 

Enquanto escutava e balbuciava a música, pensava se ela, um dia, também veria a vida em rosa. Apesar de procurar ser bem prática na existência, em questão de amor, não arrisca ser tão racional. Balançou a cabeça para mandar embora o pensamento. Pensou em parar para tomar um café, devia estar cansada das horas na estrada, mas desistiu quando lembrou do horário e, provavelmente, a cafeína tornaria uma bela noite de sono em algo vão.

Seguindo os desejos da amiga, Sofia se hospedou em um antigo hotel no coração da cidade, uma área renascentista e da moda em alta costura. Vizinho ao Museu do Louvre e com vista para Catedral de Notre-Dame e rio Seine, era um sonho de hotel. Diante desse cenário congelado no tempo, a moça se sente bem com o antigo e, às vezes, tem a impressão de ter nascido na década preterida.

“Paris é mais que uma aspiração” — pensava Sofia. Quando se pôs a caminhar pela cidade, se encantou e se envolveu com cada pedacinho de história. Como estava incumbida de visitar alguém, após a fila para entrar no Museu do Louvre, enfrentou mais uma para se encontrar com ela, considerada uma divindade da arte. Naquele fuzuê de gente e um empurra-empurra danado, com cliques de fotos em diversos tipos de câmera, seguia com olhar intacto em direção à Mona Lisa.

Nas palavras de Giuseppe, La Gioconda é gioia — alegria, em Italiano —, a celebração do amor. E, de acordo com ele, este último não precisa ser traduzido para nenhuma língua, porque é sentimento e, arte é emoção. Segundo Giuseppe, La Gioconda é a mais pura expressão do Renascimento Italiano. De fato, não é à toa que o quadro é descrito como uma sutileza enigmática recheada de ilusionismo atmosférico.

Contudo, Sofia foi ver a Mona Lisa para buscar a resposta da indagação nomeada por Maria. Depois de passar minutos hipnotizada com o olhar da figura pintada, Sofia foi retirada gentilmente da fila por um guarda. Não impedida de continuar no espaço, a moça voltou para a ala repetindo todo o processo. Passou horas naquela sala à espera de uma epifania e nada.

Tomou um barco e se permitiu conhecer parte da cidade passeando pelo rio Seine. Percebeu que as imagens romantizadas de casais apaixonados estão apenas nos livros lidos e filmes vistos durante décadas de vida. A realidade costuma ser desconcertante em um mundo tão moderno e tecnológico.

Ainda assim, o capitão do barco foi o ser mais elegante e gentil que encontrou a bordo. De forma eloquente, sanava charmosamente cada curiosidade despertada por Sofia. Uau! Que homem! Alto, pele clara, cabelos pretos, olhos atraentes, mãos de… Pena ser adepto sexualmente ao mesmo gênero. Fazer o quê? Como diz uma grande amiga, “o mundo é gay”.

A viagem estava comprometida com apenas três dias de passeio. Conheceu alguns poucos recintos e se deu ao direito de bancar desjejum, almoçar e jantar nos restaurantes indicados por aqueles entendidos do assunto. Estava saciada.

No último dia, depois de enfrentar a longa e exaustiva fila para subir a Torre Eiffel, percebeu estar perdida em si diante do mundo à sua volta. Respirou fundo e achou melhor por encerrar a visita à cidade levando os famosos macaroons franceses como lembranças para Maria e Giuseppe. Assim, no café da torre, diante da variedade de cores, pediu ao atendente indicação de quais sabores levar para o casal.

Quando perguntada sobre o casal, revelou parte da sua busca em sanar os desejos de Maria. O lindo e jovem rapaz de pele marrom e olhos cor de mel fitou-a com tanta intensidade e disse, em tom bem baixinho:

— Você pode levar os macaroons para a sua querida amiga, mas a resposta para o que ela busca só pode ser saboreada por ela mesma. Afinal, aquele senhor criador da Teoria da Relatividade já se referia ao passado, presente e futuro apenas como uma imutável ilusão.

Depois de uma breve pausa, continuou:

Mon Cherry, não importa o espaço nem o tempo, nem adianta portar uma réplica para o outro, porque, o que procuras, está apenas dentro de você.

 

Maio de 2020

Edsandra Carneiro, escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.

Foto de Chris Karidis em Unsplash