O Mar, substantivo feminino

por Fabiana Aquino Lana

 

Acordei numa dessas madrugadas de primavera, em que o mundo ainda parece dormir.

Tudo era silêncio e paz, e a escuridão ainda tomava conta do céu.

Estava decidida a ficar mais um tempo na cama, mas borboletas azuis faziam malabarismos dentro de minha cabeça… eram borboletas frenéticas e lindas… eram borboletas infantis… decidi segui-las!

Coloquei meu maiô, tomei um gole de café, e nada mais! Eu e as borboletas azuis partimos para a praia.

Na areia eram testemunhas apenas os cachorros. Aquele par rústico e silencioso de cachorros….

Senti no rosto um ar fresco da manhã… uma carícia natural e leve que acalmou meus pensamentos.

Ainda era noite e fui andando em direção ao Mar.

Pedi gentilmente licença e nele me lancei, e em silêncio pedi que ele me acolhesse. Que acolhesse meus medos e minhas entranhas… que acolhesse meus desejos, minhas lágrimas, sorrisos e hormônios de mulher.

A Ele me entreguei como um filho se entrega aos cuidados de uma mãe: sem reservas.

Senti meu corpo ser tomado por toda aquele poder sobrenatural inerente ao Mar…

E o Mar, mesmo diante de todo seu poder infinito, gentil e calmamente me abraçava.

Estávamos sós, eu e o Mar… E as borboletas já adormeciam…

Como testemunhas apenas os cachorros, que, já tão acostumados com tamanha grandeza, não pareciam muito se importar

E eu mergulhava em Suas entranhas cada vez mais fundo e pensava em tudo o que era aquela vastidão.

Havia dias que eram de ressaca, havia dias de fúria, dias de calmaria e dias azuis…

Havia, a todo instante, vida ali sendo gerada… peixes, tubarões, tartarugas curiosas e tímidas… ali nadavam livremente algas, arraias, baleias e golfinhos…

Corais cresciam delicadamente em seus infinitos recantos, compondo cidades secretas para que os seres mais recatados pudessem viver…

Ali havia carcaças de navios que um dia foram gigantes, mas que se perderam frente a Seu imperial poder.

Ali havia sereias… e toda uma corte de débeis marinheiros (agora mortos) que se deixaram seduzir…

Ali havia conchas,

Conchinhas…

Ali havia ouriços traiçoeiros pregados nas pedras,

Ali havia restos de rede dos pescadores,

Ali havia um pouco do choro daqueles que usam o mar como alívio…

Ali havia calmaria…

Ali havia fúria!

E, enquanto eu entregava todo o meu corpo e pensamentos ao infinito dos mistérios do Mar, o dia foi raiando, as pessoas foram chegando pouco a pouco, e tudo foi se tornando menos real…Mais cibernético.

Totalmente recomposta pelas águas infinitas do Mar eu poderia partir para o Mundo: sentia-me livre, com um poder natural enraizado em todas as minhas vísceras… sentia-me infinitamente humana, selvagem e mulher.

Lembrei do dicionário que havia em cima da mesa de minha casa. Eu teria que retornar urgentemente…

Havia ali algo que merecia ser prontamente corrigido.

Sequer me enxuguei. Parti com urgência em minha missão.

Abri a porta de casa, folheei as páginas antigas do dicionário, procurei na Letra M e li: Mar; substantivo masculino.

E, com toda a licença poética que me foi concedida pela aurora, peguei uma caneta, rabisquei o dicionário e escrevi: Mar; substantivo feminino.

Isso porque, nessa manhã de primavera, claramente percebi que não se pode conceber o Mar, quando o correto mesmo é (A)mar…

 

Fabiana Aquino Lana é cronista convidada do Clube de Crônicas e mergulha fundo em seus textos

Imagem: fotografia de Cart Miers retirada o Portal Terra

Primavera de 2017.