Que horas ela volta?

O dia na Redação tinha sido intenso. Discutíamos questões políticas de alguns países. O assunto também incluía uma vastidão de casos das desigualdades sociais de vários lugares. A ideia era a produção de uma matéria para mostrar as diferenças econômicas basais entre pobres e ricos. Até que chegamos ao assunto “empregada doméstica”: divisões na casa dos patrões, elevadores social e de serviço etc. Dos sete países presentes, Quênia e Brasil eram os únicos com tantas similaridades brutais.

Como editora de conteúdo brasileiro, sinto muita dor no estômago por saber a realidade de um País tão maravilhoso e tão desigual. Na época da Copa do Mundo, escrevi um texto para alguns amigos e uma colega me disse que eu não tinha o direito de dizer nada mais sobre o Brasil, porque “fugi” da realidade de lá. Entrei numa profunda tristeza e, por meses, a palavra covarde latejava na minha cabeça diariamente. Foi um período barra-pesada. Sim, estava muito fraca.

Mesmo sentindo dores, lutando constantemente para mostrar o brasileiro fora dos estereótipos apresentados à comunidade internacional — e ainda ouvindo que não pareço brasileira porque sou muito reservada, educada, discreta etc. —, encontrei forças no filme “Que horas ela volta?”, dirigido por Anna Muylaert. A personagem Val, interpretada brilhantemente por Regina Casé (ela honra o nome de rainha), mostra exatamente o que falávamos na redação: confronto de países segregacionistas, racial ou social.

Na volta do trabalho, pedalava pelas ruas de Amsterdam e resolvi parar no cinema assim que vi o cartaz do filme recém-lançado na cidade. Foi o tempo de comer um lanche e ir para a sessão. A sala perto aqui de casa é bem seletiva. Somente os chamados filmes cabeça são apresentados. Os populares vão para a casa frequentada diariamente por centenas de pessoas, inclusive turistas. E, naquela noite, a sala estava bem lotada. Aqui, o título original da película permanece e incluem-se apenas as legendas em holandês. No meio dessa turma de holandeses, mais velhos, eu sentia um orgulho grande por ver uma produção brasileira inteligente nas telas estrangeiras.

Muylaert coloca o dedo na ferida da hipocrisia do meu País, que deixei para conhecer o outro e entender a mim mesma. Sou uma filha que precisou sair de casa para amadurecer, para curar as mágoas e os traumas de um passado recente. Ainda assim, é uma Pátria que respeito. Regina Casé interpreta uma empregada doméstica que mora na casa dos patrões em São Paulo. Val veio do Recife. A expressão “quase da família” me lembra muito o jeitinho pelo qual a realidade é apaziguada.

Lembrei da tia que também trabalhava em “casa de família”. Recordei das faxinas que fiz em terras estrangeiras, ainda que poucas. Em uma dessas, na casa de uma psicóloga brasileira ouvi: “Você é muito educada para trabalhar como faxineira. Não precisa dizer tantos ‘Por favor’ e ‘Obrigada’ para tudo. Para esse tipo de serviço, precisa se vestir mais simplesinha.”

Nunca mais voltei na casa daquela psicóloga. Ainda fiz alguns trabalhos como faxineira para pagar um curso de idioma. Depois, mudei de país. Tempo depois, fiquei chocada ao ouvir de uma amiga o relato de que a mãe dela, enquanto empregada doméstica, jamais podia fazer as refeições na mesa dos patrões. E ela, quando ajudava na limpeza, não podia aceitar mais do que fosse oferecido para almoçar. Senão, apanhava da mãe. Entretanto, essa amiga queria o mesmo sorvete do filho dos patrões. Assim como a filha da Val, ela também foi estudar numa faculdade de destaque.

Agora, morando na Europa, falando vários idiomas e percorrendo por culturas diversas, ainda é símbolo de rebeldia, de quem não respeitou o caminho traçado por não sei quem e nem sei quando. Até hoje, ela ainda leva a fama de “muito segura de si” ou de “muito peituda”, não só pela família daqueles patrões, mas pela própria matriarca.

Atualmente, é usada como uma espécie de banco. É explorada com a ajuda financeira para uma família que prefere respeitar as normas de um sistema condizente à segregação de que tais grupos ocupem tais posições. Isso dói em mim, ainda que a ferida esteja aberta em tantas outras pessoas. Contudo, minha amiga leva adiante a própria história com bom humor.

“Que horas ela volta?” retrata esta crônica social de cunho dramático e narrativamente irônico. No filme, há um equilíbrio lúcido nas representações do elenco. As desconstruções dos gestos corporais da Regina Casé, nas funções desempenhadas pela personagem Val, são fascinantes. O humor é cotidiano, simples, doce e não é forçado. A moça, Camila Márdila, que interpreta Jéssica, filha da Val, é “dona de si” e atua excepcionalmente, desequilibrando as bases estabelecidas.

Diariamente, vários símbolos correspondem à dinâmica social. Em “Que horas ela volta?”, o contexto em torno ao jogo de xícaras de café ganha um toque surreal e oferta um ritmo agradável, cômico. Permite compreender a história de Val e de todos os personagens da trama. Para mim, o sorvete, as xícaras, o vestibular e a piscina foram marcantes.

A profundidade do roteiro em destacar questionamentos de libertação social ganha destaque com a história do vestibular. Todavia, é majestosamente realçado com a cena da Regina Casé na piscina. É tão rica de simbologia, significados ou qualquer termo que retrate a verdadeira emoção do ser em se libertar. Em se permitir viver fora de padrões determinados não se sabe por quem e nem quando.

Enquanto subiam os créditos da equipe na telona, pensei no meu trabalho. Questionei a mim mesma sobre quais caminhos seguir. Reavaliei conceitos. Viver sob amarras econômicas e sociais incomoda. Precisamos ficar atentos ao nosso ser interior e ouvir a nossa intuição, aquilo que nos move. Importante saber que o nosso tempo é de aprendizado, buscando nossa libertação, nosso equilíbrio para que com inteligência façamos o que realmente gostamos de fazer. Se questionamos o meio podemos nos fortalecer.

As lágrimas inquietantes que escorreram em meu rosto levaram embora o sentimento de covardia que não faz parte do meu caráter. Mas que me foi permitido por meio de palavras que eu não nasci sabendo. Saí do cinema comovida e seduzida, deixando a culpa no primeiro canal a caminho de casa. Por mim, ela não tem hora para voltar.

Setembro 2015

Foto: Google Imagens

• Edsandra Carneiro escreve às terças-feiras