A flor-cadáver do homem-velocidade

(Por Eduardo Selga)Eduardo Selga

Nos anos em que fui adolescente, e mesmo nos primeiros tempos do que gostamos de chamar maturidade — se é que isso existe — frequentar salas de cinema equivalia, de certa maneira, a uma introspecção, e nesse sentido ainda guardava forte similaridade com a literatura, mesmo não sendo o filme um roteiro adaptado de obra literária. As imagens eram palavras moventes. Quem ultrapassou a faixa dos quarenta anos sabe do que digo, provavelmente.

Esse movimento de retorno aos meus interiores ocorria apesar do escândalo representado pelo tamanho da tela e o gigantismo da imagem que provocava um sentimento cúmplice entre o não ficcional e o ficcional. É que a proximidade fazia com que os atores perdessem um pouco a aura de estrela e se tornassem de fato humanos, quase sentados na poltrona ao lado e também comendo pipoca.

Eu, e imagino que muitos espectadores, éramos chamados a ficar sozinhos conosco mesmos, na interação solitária com a imagem, por melhor que fosse a companhia, pois a imagem audiovisual, do modo como experenciada ontem, exigia do espectador, mais do que hoje, o exercício da interpretação dos significados possíveis.

Enquanto na leitura é preciso extrair a(s) imagem(s) sugerida(s) pelas palavras, dimensioná-las, pesá-las junto ao contexto ficcional, no cinema essa imagem é entregue de bandeja e com recomendações do chef, o que reduz a possibilidade de outras interpretações. Ou seja, no segundo caso a atitude é mais passiva que ativa, um aguardar pela cena seguinte, onde poderá haver a imagem que esclareça qualquer escuridão e satisfaça a ansiedade.

Mesmo assim, o ambiente do antigo cinema provocava mãos no queixo, cenhos interrogativos, bocas entreabertas, aquela mudança de posição corporal que muitas vezes denota algum desconforto. Havia, sim, a atenção dispersa, mas não era mais do que qualquer coisa num universo de muitos olhos acessos a refletirem o lume da tela.

De um lado, isso acontecia por causa da dinâmica dos filmes, menos adrenalínica, menos espetaculosa (mesmo nalgumas bobagens norte-americanas), mas, sobretudo, havia no público e nos filmes menor quantidade de sorrisos abobados das comédias românticas ou de costumes. É que a representação do humano no cinema era, em minha juventude, acredito, menos estereotipada, apesar de os pilares para o atual homem na telona já estarem, desde então, muito bem fincados. Lá atrás, a flor-cadáver que é esse homem-velocidade, esse homem-consumição, estava muito bem plantada, aguardando apenas florir.

De outro lado, o cinema não berrava nos ouvidos do pagante como uma alma penada, e a presença do ar-condicionado não era uma tentativa de plagiar a Antártida. Hoje, no escurinho das salas de exibição, que permanecem ótimas para mãos bobas e beijos na boca (para quem gosta de beijo gelado), assim que a sequência de trailers começa a ser rodada, o som nos chega como uma agressão sem tamanho. Ao menos para mim.

Não demora muito, se for perspicaz, o sujeito começa a perceber a tentativa de congelá-lo aos poucos, um banho-maria às avessas. Talvez seja uma estratégia, uma coação: tanto o surround quanto o frio paralisam o sujeito que, meio estatelado, fica atento ao filme. Ou finge. Parece-me que a relativa imobilidade inicial é, efetivamente, estar à espreita, como quem espera para qualquer instante algum assombramento.

Até pode ser rabugice de alguém que já na adolescência havia envelhecido um bocado, mas acredito que a gritaria dessa modalidade da indústria cultural chamada cinema tenha íntima relação com a nossa falta de diálogo no mundo existente fora das salas de exibição, com a grande dose de autismo na sociedade. Os sujeitos falam para si próprios, mesmo que em aparente interação com outrem. Individualidades muito senhoras de si, altissonantes como caixas de som (ainda que vazias de tudo), originam solilóquios com aparência de diálogos, nos quais muitas vezes é preciso gritar porque o objeto de convencimento não é o outro e sim o próprio sujeito gritante.

Talvez por isso, pela frieza do corpo social, ou por seu anestesiamento, poucos estranhem ou enxerguem a agressão de que falo nesse instante, em tão baixo volume. Numa sociedade em que tudo tem de ser aos gritos, aos trancos e barrancos, a reprodução disso num espaço que antes possibilitava a reflexão não é mesmo de assustar.

Mas para onde caminhamos, assim tão surdos que estamos diante do outro, tão congelados? A pergunta pode parecer mera retórica, mas é importante, pois a indústria cultural é incapaz de fabricar o homem o tanto quanto procura desconstruí-lo ou, melhor dizendo, programá-lo à sua moda. E o faz de maneira que nossa comunicação vá se tornando, paulatinamente, ruído. Imagético, mas ainda assim ruído.

Foto: http://nonividal.blogspot.com.br/

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