Abigail e eu

abgail e eu(Por Jeanne Bilich)

Como de rotina, resgato bem cedo os jornais depositados à porta da cozinha. A água prestes a ferver, num átimo, para a xícara de café inaugural das minhas manhãs. Café fumegante numa das mãos, jornais na outra, dirijo-me, incontinenti, à biblioteca. À porta, também rotineiramente, deparo-me com Abigail, plácida e régia, dominando o ambiente, lá do seu nicho na mais alta das prateleiras entre as inúmeras estantes recheadas de livros:

“Bom-dia, Abigail…”

Das cavas órbitas responde – ou assim imagino – com um sutil piscar cúmplice, acima das cintilações das alvas arcadas dentárias, num arremedo de sorriso fixo e permanente.

Abigail habita esse espaço há 26 anos. Na voragem dos dias, tornamo-nos amigas, confidentes, sendo ela, confesso, minha única conselheira. Silenciosa e extraordinariamente sábia! Soberana. Tão formidável é o seu poder que, acreditem ou não, determinou esta crônica. Na verdade, o tema que eu havia idealizado era bem outro. Mas… qual! Abigail se impôs. Não disse ser ela soberana? Assim é, pois, a Abigail. Azimute dos meus dias, força imperiosa a nortear meu modus vivendi no decorrer de duas décadas e meia de convívio diário.

Suponho, já devam pela sua descrição suspeitar, Abigail é um crânio humano que, por inaudita coincidência (?), “encontrou-me” em Manguinhos, no exato dia em que completei 40 anos. Era 12 de outubro de 1988. Naquela chuvosa manhã, deambulando sozinha pelas ruas do balneário, divisei numa canaleta de canto de rua, um objeto redondo e esbranquiçado.

À primeira vista pareceu-me uma bola de borracha rasgada. Total equívoco. Ao aproximar-me constatei, num susto, tratar-se de um crânio. Busquei cuidadosamente no entorno o local de onde poderia ter saído. Talvez – quem sabe? – impulsionado pela força das águas. Chovera torrencialmente à noite. Procura inútil. Distanciei-me, então, prestes a abandonar o “macabro” achado. Mas, ao relampejar de um insight, retornei.

Num saco plástico retirado de uma lixeira, depositei a peça anatômica e encaminhei-me para a única farmácia de Manguinhos. Precisava de um vidro de formol. Já no meu apartamento, mergulhei o crânio no líquido químico para uma limpeza cuidadosa. Ao escová-lo “senti” deveria chamá-lo de…  Abigail. Por quê? Não tenho a menor idéia! Pelo menos, de modo consciente. Óbvio que familiares e amigos protestaram. Admoestações interpretativas é que não me faltaram:

“Que coisa mórbida, Jeanne!” “Depressivo!” “Isso é necrofilia!” “Você é gótica?”

Não, definitivamente. Aliás, sou é ardorosa apreciadora da vida. Minha irmã, Mirian, inclusive, afirma, com frequência, ser eu uma pessoa alegre, de “bons bofes” para ser fiel à sua expressão gaiata. Sobremaneira sorridente, bem-humorada, gargalhada fácil.

Abigail relembra-me, cotidianamente, minha mortalidade. Memento mori. Finitude que assiste a nós, humanos. “A vida perderia toda a beleza se não houvesse a morte.” Quem disse? Ora, Nikolai Vassilievitch Gogol. Sentimental e reflexiva alma eslava. E eslava sou, pela ancestralidade paterna. Talvez, essa a razão, de assustar-me tanto com o ditatorial “Projeto Saúde & Longevidade” ora em curso. A ambição de festejar o natalício centenário. De preferência, a imortalidade! Os mitos literários de Fausto, do Judeu Errante, de Dorian Gray e do Vampiro Lestat.  A perspectiva do fim velada, expurgada, banida, proibida aos olhos do coletivo social, gerando pesadelos e arrepios. Repúdio. Repulsa. Tanatofobia.

Pois, na contramão, aqui ratifico a suprema ventura de conviver com Abigail. Discreta diz-me, gentilmente, que dia virá estarei tal como ela. Alerta-me, pois, a viver plena, intensa e prazerosamente. Contraponto. Que vida é só… Ser. Por um tempo humanamente finito, não é mesmo Abigail?  Obrigada pelas suas filosóficas e sapientíssimas lições!