Bolas de Fogo

 

 

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

(José Saramago)

 

Sinal amarelo: atenção! A vontade é de acelerar o carro. Não dá. Fico na primeira fila. Sinal vermelho, trânsito fechado, cena aberta. O garoto surge com o rosto maquiado e pedaços de madeira ainda mais coloridos. Ateia fogo às extremidades dos tocos e começa seu show. A apresentação, na faixa de pedestres, atravessa todo o dia. Quando anoitece, os faróis funcionam como refletores para esses artistas da vida. Mas é um espetáculo que ninguém quer ver.

Eu, ao contrário, observo o show. Não o dos desenhos mágicos formados pelas bolas de fogo, mas o dos meus colegas de volante. Olham todos para os lados, ou fingem buscar algo dentro de seus carros. Simulam não notar o pobre diabo queimando sua necessidade de sobreviver diante de nossos olhos. A lógica é mais ou menos a seguinte: se não vejo, não me envolvo, não preciso contribuir.

Estarão cegos? Não adianta fingir. Não adianta fugir.  É um show que enxergamos mesmo sem olhar. Ficamos ligados nem que seja para saber quando avançar com o veículo e se libertar daquela situação incômoda. Mas não nos livramos. Não somente porque na próxima esquina poderá haver outra apresentação indesejada, mas sobretudo porque, acredito, estamos todos conectados. O infortúnio de um ser humano nunca se esvai apenas nele mesmo.

Algum motorista, mãos ao volante, pode, iludido, pensar que está no comando. Afinal, trabalha, paga seus impostos, faz o dever de casa para sentar-se na direção. “Mim, carro; você, rua.” Muito primitivo. Não é assim que se vive em sociedade. Não fosse tão egoísta, seria ingênuo.

O mal de um é o mal de todos. E se pensarmos, ainda que por um minuto — o tempo do sinal —, quem, nesse instante, está no comando? Quem manda em quem? O menino malabarista se impõe e obriga, a nós, a classe que dirige, mudarmos algo extremamente pessoal como a rota do nosso olhar. Tangenciamos por não conseguirmos encará-lo de frente.

Se o fitarmos, olho por olho, gente por gente, não teremos coragem de negar mais nada a quem, sabemos, a vida já negou tudo. Então, encenamos para ele, o artista.

Sinal verde. O trânsito é liberado e sigo sem dar um trocado para o sobrinho. “Fica para a próxima” — dizemos, quando nos dignamos a tal. A próxima é logo ali. A próxima se renova na possibilidade de votarmos por um País melhor.

A descrença generalizada em partidos e candidatos enredou a todos. Não sem razão. Escuto, diuturnamente: “Não tem jeito mesmo”. O raciocínio não favorece a sociedade e só contribui para as coisas permanecerem como estão. Pesquisar, buscar informação, dá trabalho, mas verificar o agir, o não dizer dos que se habilitam, é fundamental.

Concordo que o quadro atual não facilita as coisas. Mas, não dá para simplesmente desistir. A democracia, já disseram, é o pior sistema de Governo, tirando todos os outros. Então, pode reclamar. O que não pode é só reclamar. Fechar os olhos para a realidade das ruas, das cidades, da Nação e tentar seguir como se não fosse possível modificá-la.

Pode até ser um direito, mas não me parece o melhor caminho. Devemos ser os primeiros a respeitar o nosso voto e não deixá-lo queimar no ar. O voto pode tudo, só não pode qualquer coisa.

Martha Gonzalez escreve, quinzenalmente, aos domingos

Imagem: votopravaler.org

(14.9.2014)

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