Minha mãe é uma crônica

A fábrica de mães sofreu uma pane e, quando voltou a funcionar, a minha, por engano, foi colocada, mais uma vez, na esteira que injeta o chip do bom humor. Resultado: ganhou uma dose extra. Só isso para explicar a figura, ou melhor, a peça.

Essa história de minha mãe é uma peça, eu sei, já ocupou teatros, cinemas e até a programação da TV. O filho da mãe que expôs a dele, em rede nacional, nos fez rir a todos. A identificação com textos e situações tornou-se ainda mais engraçada pelo jeito mal-humorado com que a mãe retratada se metiana vida dos filhos.

Mãe é quase tudo igual, mas a minha, ao contrário da descrita acima, é de um bom humor contagiante. Não deixa passar uma oportunidade de dar uma boa gargalhada. Ri não só das boas piadas.Ri de situações tolas, de trocadilhos débeis, de piadas bobas. Ri também de si mesma. Uma lição que tratei de aprender. Somos mesmo todos risíveis.

Em sua companhia, nenhum programa fica sem graça.

Moro no Estado do Espírito Santo; ela, no Rio de Janeiro. Na minha última viagem à Cidade Maravilhosa, flanava pelas ruas quando me interessei pela programação do Cine Joia, em Copacabana.Como sei que ela adora um cineminha, telefoneie marcamos.

O tempo para a sessão começar era curto, mas suficiente, já que ele reside a poucas quadras. Como costuma demorar para se arrumar, avisei que, senão chegasse na hora, eu entraria no cinema. E comecei a esperar: dez, quinze, trinta minutos e ela nada.

O Cine Joia é uma joia… Digo: uma sala de projeção de filmes de arte com menos de 90 cadeiras. Se vacilar, só se consegue lugar nas poltronas da frente. Ou seja:você acaba por ficar lembrando do filme por dias, não pelo roteiro ou fotografia, mas pelas dores no pescoço.

O simpático rapaz que cuida da bilheteria é bom de jogo. Explico a situação, deixo o ingresso dela pago e entro. Acabam os trailers e, mal o filme começa, a danadinha se senta ao meu lado. Ao fim da exibição, me sai com esta:

— Que sorte eu dei, hein?

— Foi mesmo, mãe. É chato pegar o filme começado.

— Não estou falando disso. Você comprou meia entrada e o rapaz me deixou entrar sem pedir minha carteirinha de idosa. Acreditou que eu tenho mais de 65 anos.

Caímos na gargalhada. E ela, que tem mais de 80, completa:

— Acho que está na cara, né?

—Que você é da melhor idade? — provoco.

— Não! Que sou uma pessoa confiável. Não iria mentir para pagar menos — e solta outra risada.

Nas manhãs de domingo,ela bate ponto no Teatro Municipal ou em alguma outra sala de música. Orquestra, ballet, ópera… Não deixa passar nada. O valor da diversão? Um quilo de alimento. Aliás, conhece todos os programas culturais gratuitos ou com pagamentos irrisórios do Rio. Vai sozinha ou com as amigas. O Bando das Maricotinhas, como eu e minha irmã as chamamos.

A paixão pela música é antiga. Na minha infância, depois das tarefas escolares, a sala de casa era tomada por músicas clássicas. Discos com valsas e óperas se repetiam na vitrola. Vitrola, para quem está chegando agora,é uma espécie de… Ah! Google, viu!

Ela também adora estar envolta com tecidos, agulhas e alfinetes. E, como toda costureira, é muito bagunceira: perde a carretilha, moldes e, constantemente, a tesoura e a fita métrica.“Não sei como pode sumir… Peguei nela agorinha. Você não viu não, filha?”

Quando escuto uma frase dessas, arrepio. É a deixa para “Me ajude a procurar.” Olho o antigo quarto da minha irmã, hoje transmutado em quarto de costuras e, sinceramente, não sei como ela consegue é achar algo ali dentro. Sumir me parece sempre o mais provável.

Enfim, é seu vício. O bom é que estou sempre ganhando uma roupa nova.Supercriativa, não se limita a copiar modelos:inventa figurinos e descobre soluções. E não é de hoje. Éramos crianças quando minha irmã chegou da escola com a calça rasgada no joelho. Era seu primeiro dia de uso. Ela retirou um dos bolsos e aplicou no local rasgado. “Pronto! Amanhã, usa assim.” Uma ousadia, à época. Afinal, estudávamos em um colégio tradicional do Rio. Lançou moda. Em uma semana, ter um bolso no joelho da calça parecia parte do uniforme escolar.

Embora sempre envolvida com o universo da moda (teve até butique), não tem nada de perua. É a mulher mais básica para se vestir que conheço.“Quem faz a roupa é quem veste. Tem gente que pode usar a melhor seda, mas não tem postura, não tem elegância. Não adianta” — ensina.

Básica, porém detalhista. No seu último aniversário, recusou um sapato confortável de presente. Ao sairmos da sapataria, comentou comigo. “Com aquela fivela, ficou parecendo sapatinho de velha. Não é para mim”— e solta uma gargalhada.

Apesar de ser a prova viva de que rir é o melhor remédio, é claro que também tem seus momentos de rabugice.Mães, em geral, acreditam que seus filhos são meio incapazes de se alimentarem direito. Só que a minha, tem um agravante: adora ler sobre nutrição e, como sua memória, às vezes, desanda, recebo as mesmas lições repetidas vezes.

Recentemente, fiz uma cirurgia na vista. Pronto! Agora, não posso mais comer com os olhos. Tenho que dar preferência ao que pode me fazer bem. E ela telefona, cobrando.

— Alô, filha! Tudo bem? A vista tá boa?

— Tudo certo.

— Você tem se alimentado direitinho? Tem que comer fígado, que tem muita vitamina A. É bom para vista.

— Tá bom, mãe. Deixa comigo. Tô de olho no fígado!

— Fígado, couve e cenoura.

—Sei.

— Mesmo que você não goste de cenoura, joga um feijão por cima.

— Mas eu gosto de cenoura, mãe.

— Ah! Então é sua irmã que não gosta.

— Ela também gosta, mãe.

—Ué? Quem não gostava de cenoura?

—Quem não gostava era a Poly — brinco, referindo-me àirmãzinha de quatro patas que já partiu.

— A Poly era louca por cenoura! Mas, joga o feijão por cima que você nem sente o gosto.

— Mãe, eu a-do-ro cenoura, ok? Tá doidinha, hein?

— Me enganei —ri, e completa: — Doidinha eu sempre fui, e quem sai aos seus não degenera.  O que você está fazendo, agora?

—Tô me aprontado para ir trabalhar.

— Já almoçou?

— Não, mãe! Almoço no caminho.

—Tem que comer fígado, minha filha. Fígado tem muita vitamina A. Couve e cenoura, também.

—Pode deixar mãe — e tento mudar o foco: — E você.O que está fazendo?

— Tô falando com você, ué! — e morre de rir.

Rimos juntas. Ela pega folego e recomeça:

—Essa cirurgia, não foi brincadeira, não. Tem que cuidar da alimentação.

— Mãe, eu como direito.

— O prato tem que ser colorido.

— Meu prato mais parece uma parada gay!

—Por quê? Só tem frutinha? —e desata a rir.

—Mãe!… Horrível essa.

— Foi boa. Você é que não entendeu. Vou explicar…

Olho o adiantado da hora.

— Não! Não! Olha, agora entendi.  Foi ótima— e rio também.

—Já almoçou?

—Não, mãe! Eu tô saindo para almoçar.

— Ah, é? Então, come cenoura e fígado.

—Tá, mãe! Vou comer cenoura que é ótimo para o fígado— respondo rápido.

— Você tá com problema no fígado?

—Não, mãe! Me confundi.

— Você não está dormindo direito. Tá cansada. Deixa de ficar lendo até tarde. Isso não faz bem para a vista.

— Não fico mais lendo até tarde, mãe. Eu apago cedo.

— Você precisa se cuidar.

— Mãe. Deixa eu desligar. Preciso é ir almoçar.

—Então, vê se almoça direi…

— Sim. Vou comer fígado, antes que você coma o meu e não vou esquecer de colocar um feijãozinho em cima da cenoura para conseguir engolir, tá legal?

— Sim, faça isso. É um bom truque… Engraçado,pensei que fosse a sua irmã que não gostasse de cenoura!

Mães são assim. Seus cuidados com os filhos rendem sempre uma boa história.Algumas rendem contos; outras, uma novela; há as que se parecem com um esquete; outras viram crônica.Não importa! Com todas as suas particularidades, uma coisa é certa:a sua, a minha, toda mãe é uma peça. Uma peça insubstituível.

A todas as mães: Feliz Dia das Mães!

Martha Gonzalez escreve, quinzenalmente, aos domingos

Imagem: www.gordofresco.com

(Primavera,2015)

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